quarta-feira, 15 de junho de 2016

Cachoeira


Existe confusão dentro das nossas cabeças. Quando isso tomou conta de mim por volta das 17 horas notei que paralelamente ao sentimento de confusão existe uma determinada coisa que chamo de “clareza”. A clareza não é iluminada, não é branca, amarela ou bonita; não é coisa alguma que eu possa dizer. Você sabe o que é somente quando verifica dentro de você, em silêncio. E o que é a minha clareza que pretendo expor?  Despindo esta palavra de qualquer significado ou imagem ou o que quer que seja, esta coisa que chamo clareza nada mais é que a aceitação da confusão. Existe confusão dentro das nossas cabeças. Ponto. Quanta energia vamos gastar tentando organizar essa fonte inesgotável de poeira e de nós cegos? Por quanto tempo pretendo continuar com isso? Essa energia se chama tempo, e gasto parte preciosa da minha vida raciocinando em tempo, enquanto esse tempo passa. E quanto mais o tempo percorre, maior a sensação de confusão e de artificialidade. E hoje percebi que quando não combatemos a confusão ela para de ser um inferno e se torna algo neutro, misturado, como uma cachoeira que a gente observa e não tenta contar quantas bolhas passa correndo pela nossa visão. Você sabe que ela é o que é, e isso já basta. A natureza é neutra. Minha mente é parte da natureza. A confusão é neutra. Não preciso agir: tudo flui. Acho que começo a enxergar sem exigir, ainda que de modo bastante obtuso. Isso é sério. 

domingo, 1 de dezembro de 2013

"Sobre Ninguém na Sua"


Ao longo dos anos você percorre por uma série de situações parecidas ou ao menos próximas de pouca variedade ou brilho. Ao longo dos tempos o tempo é mais rápido, um segundo depois ou no dia seguinte. As maneiras são as mesmas, os deslumbres são os mesmos; muda o protagonista, um perece e entra outro mais perecível. Alguns nos deixam na mão peculiarmente, surpreendendo a quem não se precaveu. Não é fácil perceber detalhes, não é divertido; achar sabor no que se vê, doce ou amargo ou qualquer bobagem. Texturas que se repetem, outras não mais. Eventos que estão por vir. Basicamente, é notável o frio que dá na barriga.
Lindas cores vibrantes que anima a população vestida de roupa leve e a previsão do tempo que não prospecta chover na garotinha voltando da escola de mãos dadas com a avó e em todo o resto da cidade. Nuvens branquinhas, garis varrendo a rua e amarelinhas desenhadas em tijolo no asfalto, do céu ao inferno; é assim que se vê um dia raro no ABC Paulista em que um menino no meio da rua empinando pipa encosta a linha na rede elétrica e morre assustando todo mundo que viu e não viu.
O choro da vizinha e o enigmático desespero da mãe, o pai a caminho, o amigo traumatizado e ele longe e seu ex-corpo de oito anos duro no chão. Resgate e imprensa cobrindo o defunto de todas as maneiras. Um jeito de surrealismo num dia lúdico de férias.
No aconchego a quilômetros de distância da cena, Santa Cecília, capital paulista. Do alto do segundo andar Cláudio vê o menino Cauê no jornal e sente uma profunda tristeza quando assiste a mãe do menino contando ao repórter os pormenores do que aconteceu. Cláudio nota a semelhança de seu próprio rosto quando criança, quando desobedecia a ordem de brincar na calçada e pulava alucinado por cima das lixeiras vazias e subia em árvores. Essas modas estão acabando aos poucos. O sentimento de comoção se dissolve quando ele escuta a notícia seguinte.
A alheia ligação entre esses dois cidadãos cessa quando Cláudio sai da frente da televisão e, como de costume, leva seu cão salsichinha para passear de coleira.
O cão caminha pomposamente ao lado do seu dono parecendo ter a certeza de que aquilo viria a ser a melhor parte do dia. Param na tenda de um chinês que vende pastel. O bicho come os farelos de massa e pedaços de tomates e cebolas do molho vinagrete grudados no chão enquanto Cláudio pede um pastel de carne. O pastel está pronto. Cláudio come usando uma mão enquanto a outra se sacode com a coleira; o cachorro se agita por conta de um pombo que também petisca sujeira no asfalto.
Cláudio sai da barraca de pastel. Duas mulheres passam por ele citando o menino eletrocutado: “Miiisericórdia... mulher do céu... que coisa foi aquela?”, dentre outros dizeres. Logo depois ele para para observa as manchetes na banca de jornal. O menino eletrocutado; o menino eletrocutado na boca do povo; o Menino Cauê nos periódicos, em fotografias, em texto, eletrocutado. O alarde é intenso, a ênfase incomoda e Cláudio pensa em dizer foda-se gratuitamente para o próximo que passar a seu lado comentando o incidente, mas prefere substituir o aborrecimento dizendo nada, como deve permanecer se comportando uma pessoa adequada.
As pessoas saturam o direito de se mostrarem emocionadas por alguma coisa e Cláudio não é capaz aceitar isso. Certamente estão de acordo em levar a sensação de choque junto com o menino até chegarem em casa e procurarem saber de mais alguma coisa pela qual viver. Cláudio fica chocado por ninguém demonstrar conhecimento de nada digno de mais importância, nada mais funesto ou de qualquer outra qualidade. Porém, para ele nada disso vale e vai até a casa lotérica para comprar uma raspadinha.
Ele chega lá. Um real: é o quanto custa a raspadinha. Raspa com a chave e ganha um real... naturalmente, mais uma raspadinha. Raspa com a chave, desta vez com um sentimento maior de fidúcia, e ganha cinquenta reais. Em toda sua trajetória lotérica nunca ganhara nada, por isso não consegue conceber que a sorte batera em sua porta duas vezes no mesmo dia. Mostrou a raspadinha premiada ao homem que operava o caixa, o qual estava assistindo a televisão pendurada no alto da parede. Deu a Cláudio o prêmio em duas notas de vinte e duas de cinco e balbuciou por cortesia protocolar um parabéns murcho quando ao mesmo tempo retomou o olhar para o noticiário com o menino eletrocutado protagonizando toda a programação. Taquicardia e palpitações e limite: Cláudio estoura retribuindo com xingamentos, grosserias, como se estivesse falando com toda a população local consolidada por inteira naquele pobre infeliz sem dolo de qualquer frustração alheia; afrouxa-se com a raiva de Cláudio e esboça um queixo trêmulo magoado. Até chega a dizer algo repreensivo, mas de tão frágil Cláudio não escuta nada. A mulher que estava na fila segurando um maço de contas a pagar expele um petulante e sussurrante “Ignorante!” e completa sua maldição com “Cretino!”. Absolvido de qualquer humanidade, o cão salsicha apenas põe a língua para fora sem maiores pretensões de ser nada além daquilo.
Cláudio vira as costas e respira fundo maldizendo seu caráter momentâneo, nunca havia falado com alguém assim na rua. Tem a certeza de que machucou alguém. Por outro lado sente-se cegamente realizado e discorre sobre quantas vezes havia sido a vez dele de ser a vítima de todo mundo.

“Basicamente, é notável o frio que dá na barriga”, conclui sozinho sem a ajuda de ninguém. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"Sobre Ganhos Banais e Revelações Incidentais"

Às quatro e meia da tarde houve um imenso e surpreendente desejo tolo quando do outro lado da rua uma vitrine empesteada de doces a preço único palpitou em meu caminho. Todas aquelas porcarias e não há como despercebê-las; receitas de morango, doce de leite, cereja, geleia, chocolate. Cinco reais por um pedaço do dia que vale a pena não nos aparenta ser tão caro assim. Então entro, sento e peço à moça que me atende uma torta holandesa e uma garrafa de água gelada sem gás. Talvez em um horário mais ameno a mesma moça agacharia debaixo do balcão para a câmera não acusá-la enquanto deliciosamente come um quindim numa bocada só. Por fim vejo o meu doce na mão da moça. Ele está mal representado numa espécie rasa de copo quadrado de plástico semelhante a um aquário de peixe beta, o qual me dá a impressão de que não conseguirei meter a colher nos cantos do fundo sem parecer um processo cirúrgico ou um mão de vaca que quer sugar cada centavo. Eu agradeço. Segundos depois a garçonete volta atrás e pergunta se eu aceito comer um salgado antes, peço uma empada de palmito. Só havia de frango. Aceitei assim mesmo. A empada chega com uma cor saudável. Mordo com vontade sem verificar a temperatura e concluo que está bastante quente. Engulo freneticamente o pedaço ao mesmo tempo em que expulso o vapor com uma fisionomia de angústia e afobação. O sabor é anulado pelo ardor e tudo o que posso sentir antes do bolo alimentar descer para o meu esôfago é um ingrediente desconhecido e intransigente, duro: um real fervido que no calor do momento me pareceu mais uma lisa e irregular azeitona preta. Bebo com rapidez a água para tentar anular a etapa anterior, mas minha língua já estava bastante queimada. Termino de comer o resto com pouca pressa, sem grandes pretensões de me sentir satisfeito por coisa alguma. Já estava feito. Paguei meu consumo e fui embora a tempo de descer aquela íngreme rua e encontrar no caminho três tipos diferentes de se pedir esmola; como na vitrine cheia de doces, escolhi a melhor alternativa e dei um trocado para o infeliz que lá estava sentado na guia com uma perna carcomida de perebas e uma bandana vermelha cobrindo a parte mais crítica, a qual ele ameaçou mostrar mesmo quando desviei o olhar. Do lado oposto cachorros faziam coisas de cachorro nas calçadas de comércios de coreanos e chineses e brasileiros, lá e cá: faziam amor complacente e engoliam sem vaidade restos de comidas sem pagar. Comida e custo, comida e custo... arroto constante que me fazia lembrar. E eu pensava em quão proveitoso seria existir daquele modo despretensioso, tendo apenas que dar em troca uma participação usual numa rua fedida precificando a minha própria sorte. Mas é tão besta raciocinar assim que nada daquilo fez muito sentido minutos depois; três reais a menos e eu já estava no metrô... Hora propícia para ficar calado ressaltando outros departamentos com o estômago reclamando e sacudindo. Ele queria me alertar do perigo iminente, mas me pareceu apenas uma forte crise de flatulência chegando enquanto meus sentimentos continuavam apontando para outro sentimento mais intrínseco que cansaço ou outra coisa aleatória. Nada que me dizia respeito, eu só queria ir pra casa. Minha indisposição ao lado de um senhor pardo com uma bíblia debaixo do sovaco e um rosto íntegro que quase imitei sem a intenção. Meu suor seco com dez ou mais mulheres de meia idade passivas ou o contrário e adolescentes uniformizados com blusões azuis e suas montanhosas mochilas nas costas. Suor seco deles, gosto da empada na boca indo e vindo e os vagões pareciam soltos. Coletivo munido de celulares em mãos de todos os tamanhos e cores e cheiros de coisas e lugares que me faziam ter a impressão de que eu estava mais limpo que os outros. Parecia que eu ia adoecer. Cheguei com um sorriso mental em frente ao portão de casa. Banheiro, cozinha, televisão e o alívio preciso em todas as partes do corpo; sem sapatos, meias, calça ou bagunça na sala. Um silêncio abafado me pôs relaxado no sofá para curtir aquele vazio ao mesmo tempo em que massageava minha própria testa. Recorri ao resumo do dia, recapitulei hora a hora com bastante facilidade enquanto dentro de mim algo desconhecido gradativamente me provocou calafrios como quando se declara para alguém ou quando está a ponto de ver uma catástrofe premeditada. O abdômen falando. Fui ao banheiro imediatamente para acabar com a dúvida. Em meio ao habitual, um timbre agudo e sólido estala na cerâmica da privada ao mesmo tempo em que paira uma súbita consolação intestinal. Verifico meio sem jeito de olhar e lá está o ingrediente. Nos olhos uma expressão de repúdio embaralhada pelo acúmulo desfigurado de refeições e o lucro imaculado. Imersos na água, bosta e moeda, cada coisa com seu devido nome e propósito. Um real de sempre, comoção de graça. Tirei-o dali, limpei e guardei na minha carteira com a intenção de dar a alguém sem mencionar sua trajetória. E ainda não escolhi essa pessoa.  

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

"Sobre Alimentar os Sentidos"



Abre a janela sem o propósito de achar o que nunca achara em outra paisagem, e está tão ensolarado que pouco importa; a grama se estende até a descida do morro. Só, sente o aroma de madeira e terra macia que tanto o faz feliz quando tudo se mistura perfeitamente no ar. Respira fundo e agradece por pensamento, pela afinidade bucólica, e volta a si ao olhar para os pés descalços que tocam o chão rústico da cabana: precisa cortar as unhas, mesmo. Vai à cozinha preparar um café e ligeiramente se comove pelo desalento que não existe naquele dia. Sente-se emocionado por nada em particular, talvez pela sorte fácil que desliza aos poucos e atravessa o coador indo direto ao bule, fumegando. Mira um porta-retrato solitário e sorri, pois já se foi o tempo de viver o tema ali representado: três irmãos fantasiados de mágicos. Não se culpa por ser aquele mesmo aluno indisciplinado, fez seu caminho longe, longe da professorinha. Seus olhos não escondem nada. Há quanto tempo não via seus amigos? Havia tempo? Existiam? Sabe se lá o que se passa com Frederico, com Rosa, com Alberto ou outro antigo episódio marcado por esses parceiros. Tem alguma pressa, portanto rasga o pão com as mãos e esquece-se da faca que usa para aguçar a espera de um proveito qualquer. Assim age Álamo em 22 de outubro, pois bem sabe que as chuvas começarão em poucos dias e precisará de mais temas e inspiração para acompanhá-las no dueto que tocou com maestria em sua cabeça neste veraneio. Fez sua cabeça com bastante calma até encontrá-la sã. Calça as sandálias para ter com a quaresmeira estufada de lindas folhas e flores uma prosa visual e plena de prosperidade; desce o morro com cinquenta passos tenros e enxerga algo que nos diz respeito, volta correndo em saltos dramáticos contar ao diário o que viu. Muda a caligrafia propositalmente, como se mudasse de voz ou de cor da pele, escreve um bilhete breve, rasga a folha do caderninho e lança para a varanda; o vento a leva morro abaixo e segundos depois o céu distante degrada de azul para verde como num daltonismo controlado. Seus pulsos enrijecem por uma boa gama de motivos emotivos e regozijos desconhecidos. Prefere não entender quando o vento sopra até sua escrivaninha improvisada um novo bilhete com os dizeres: “Estou esperando do outro lado”. Sente o semblante faceiro caindo pouco a pouco, dando lugar às jovens rugas que vão surgindo uma a uma, andando pelo rosto, pelos braços e fazendo cócegas estranhas quando cai um espelho ao lado da cama; não pode se assistir indo embora, encolhendo-se... sequer faz questão de notar quando se dissolve, como se isso fosse realmente possível a todo momento. Suporta e vive, de novo, pela segunda vez. Tudo ao mesmo tempo. E assim, sem tomar consciência, abanca mais uma chance de ser aquele que tanto almejava e xhxhxhxhxhhxhxssssssssssssssssssttts! Eis que chora por nascer de novo por meio de outra mãe. “Menino!”, diz uma voz feminina. Ele nada percebe, não mais. É quase outro, aquele que está no colo de uma desconhecida; a desconhecida o faz se sentir risonho, mas ele não sabe ao certo o que isso significa, não houve tempo para isso. Álamo perde o nome e todo o resto de antes para um corpo recém-nascido.
Créditos, a luz acende.
Greta sai do cinema confusa e com uma leve enxaqueca, mas feliz por ter pago apenas uma moedinha por aquilo. Por outro lado, já faz um bom tempo que ela pensa em Álamo esporadicamente e com a secreta vontade de tomar seu lugar, como se isso fosse possível. E é assim que todo bom filme deve ser.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"Sobre o Mau Uso das Pessoas"

O gosto da solidão não é oportuno. Talvez o tédio estivesse comendo tudo o que foi erguido com tanto cuidado nos últimos tempos. Tem a impressão de que vinha se arrastando para essa situação, peculiar efeito que o envolve.
Incômodo como um estomago cheio de comida, Cristian assim se sente, mas não alcança essa comparação. A preguiça incrustada no corpo é bastante e a imaginação dorme em algum lugar.
Sala sob 60 watts de luz incandescente, lâmpada insuficiente bastante perversa quando não se está disposto a curti-la. Por fim o amarelo domina a situação decisivamente como se fosse alguma revelação mais séria além de um vazio bobo. Não há alvos concretos.
Não quer ler, não quer fazer palavras cruzadas, não quer escutar música, não quer dormir. Sem telefone ou internet. A fuga pode estar na televisão, mas ela não fornece nada mais curioso do que os 60 watts por cima da cabeça. Os mantimentos da geladeira são margarina, leite, cenoura, cebola e café em pó. Café com leite o faria mais abarrotado, então também descarta as possibilidades da cozinha.
Talvez haja a vontade de fazer tanta coisa que não saiba por onde começar, questão de perspectiva. Em longo prazo, pode ir ao interior ver seu pai, pode ir à praia, cuidar de casa, comprar suas bobagens... Tudo o que gosta e o que precisa. Mas neste episódio em específico há nele algo a mais, uma tonalidade de irracionalidade, uma sensação biliosa que quer arrastá-lo para a tensão do desconhecido.
 Cheira à burocracia, baldeação e ABC Paulista. 25 anos, Cristian Pereira Cruz: 21h15 de sexta-feira; o coração bate forte e ele deve tomar uma atitude.
A arritmia que quase assusta o tira forçosamente do sofá. Vai ao banheiro tomar banho. Nu, observa-se no espelho com zelo e por algum motivo idealiza alguém desconhecido ao lado dele no espaço vazio do reflexo. Sente-se bonito. Entra no chuveiro e prossegue com a ideia de preencher o buraco vago que viu. Lava o corpo como se alguém fosse cheirá-lo ou tocá-lo, como se almejasse uma ocasião especial, como se estivesse vivo para todo o resto fora de casa.  Sovacos, pescoço e barriga devidamente ensaboados; xampu nos cabelos; alguém a mais no banho, alguém sem rosto e Cristian bonito para si. Encharca o tapetinho, molha todo o banheiro, escova os dentes, faz a barba com esmero, deixa um bigode para mudar, passa desodorante, põe a cueca, veste uma bela camisa e se perfuma estrategicamente; atrás das orelhas, pomo de adão e pulsos.
Separa o pente, o gel e eis um estalo mental que determina o que irá fazer. Pega uma moeda do bolso da calça caída no chão: coroa, eu vou; cara, fico. Coroa. Ele irá ao forró. 
Não é seu tipo de ambiente, casa de forró. Aliás, nunca pensou em ir a uma, e se algum conhecido o encontrar no caminho, definitivamente sentirá um profundo constrangimento. O que pensarão dele seus amigos engolidos pelas suas convenientes arrogâncias de quem acha que sabe do melhor?
Pega um ônibus que vai em direção ao centro. Desce um pouco antes.
Há uma pequena fila na entrada. Um pequeno aglomerado de carrinhos de lanches e vendedores de amendoim o chama atenção, mas quer entrar logo para acabar com a curiosidade. Uma faixa verde limão pendurada entre dois postes anuncia em letras rosa choque para Deus dará:
16/11 - SEXTA DO ESPETINHO: KAFTA E LINGUIÇA À VONTADE
BANDA KERO MAIS
HOMEM R$ 10
MULHER R$ 5 (GRÁTIS ATÉ MEIA-NOITE)
Está nervoso, não sabe ao certo o que está fazendo ali. Sente-se como um imbecil e as pessoas que ali estão parecem notar o que ele é. Para ele isso está bem claro. Umas mulheres de trinta e poucos olham para ele, talvez contemplando sua vulnerabilidade com algum sentimento incógnito. Quem sabe. O nervosismo aumenta, no fundo está apavorado. Paga os dez reais a uma senhora numa cabine construída de Eucatex. Ganha uma comanda de consumo.
Como na quinta-série, como quando alguém acaba de entrar numa sala de aula cheia de pessoas ameaçadoramente novas, ele passa pelo segurança, sobe uma escada e se depara com um salão tocando um som que lhe é familiar, mas não consegue se lembrar do nome da música. É um forró alucinado que está sendo distorcido pelos alto falantes, e é evidente que um teclado emula o acordeom e a bateria, parece videokê, mas ninguém dá a mínima para esse detalhe. Faz força para entrar no clima do ritmo, mas o corpo continua rijo. A banda ainda não subiu ao palco. Todo mundo está com um espetinho na mão. É um povo agitado que realmente transmite alegria. Exaustor, pelo amor de Deus. A fumaça da churrasqueira instalada em um dos cantos do salão invade a pista como se fosse efeito de uma maquina de gelo seco; há tanta gente querendo mais espetinho que ele nem tenta pegar o seu. Há um mosaico asqueroso com vários pedaços de carne e varetinhas distribuídos no chão. Cristian se vê exposto, não sabe para onde correr, procura se ocupar com alguma coisa para não continuar parecendo um trouxa exclusivo. Pede uma cerveja para um barman de olhar intrépido e cara de boliviano que parece estar à espera de alguma bobagem pronta para eclodir. Cristian vasculha a direita e a esquerda tentando achar o motivo daquela feição, depois recua e observa se há alguma mulher que lhe agrada observar. Todo mundo pede ou catuaba com energético ou vodca com energético ou uísque com energético. O que há de tão especial nisso?
Uma estranha mistura de sentimentos abusa de Cristian, parece que a satisfação não chega da mesma forma como chega aos demais; experimenta uma forte palpitação no peito que vem a ele como uma monstruosa amostra de timidez. Tudo escurece e apenas um canhão de luz negra enfeita o ambiente; quem está de branco ou algo parecido se destaca gritantemente. O povo aprova a quase penumbra com um grito uníssono e dançam, bebem ainda mais e comem menos espetinhos. Uma dúzia de calças brancas feminicoladas o excita, aqueles quadris sugestivamente se movendo para lá e para cá, sinuosamente: dá para ver as calcinhas. Ele experimenta uma ereção. Os homens estão praticamente de uniforme, todos vestidos iguais: polo com números aleatórios e brasões, e jeans cheios de remendos e zíperes estratégicos.
Mais de meia hora se passa e ele se pergunta por que não consegue ficar tranquilo. Até tenta alguns movimentos, mas prefere sentar em um banco perto dos banheiros bebendo sua cerveja.
Sem se dar conta, Cristian boceja e perde o interesse pelas bundas de Lycra. Na busca por uma posição confortável, por fim enterra as duas mãos nas laterais da cabeça e apoia os cotovelos no joelho.
Alguém sai do banheiro feminino. Ela pergunta quase gritando:
- Tá bem?
- Por quê?
- Ah, sei lá.
- Pareço tão derrotado assim? – retruca mais alto ainda, meio assustado, mas contente por alguém ter feito aquela pergunta.
- Não sei, não consigo ver o seu rosto direto nesse escuro.
- Também não vejo o seu.
- É que você tá sentado aí todo torto. Bebeu demais, foi?
- Ah, só não quero dançar.
- É, não tem cara de que gosta de forró.
- Mas você disse que não tá conseguindo me enxergar.
- Mas se gostasse faria um esforço pra dançar, pelo menos.
- Verdade.
- Estava indo fumar, mas não queria sair sozinha.
Ele foi, mesmo não entendendo aquele medo de sair sozinha. Por fim a viu. Razoável. Morena loira quase magrela bonitinha. Parecia ser uns cinco anos mais velha que ele. Dava para descobrir um ou outro encanto ali, pensou. O salto plataforma a fazia andar torto e vulgar. Carros e chiado e cafonice e pele e postes e risadas e pipoca e sotaque não eram mais tão audaciosos. Por um breve momento Cristian se sentiu dono de uma sorte tão cega que até esqueceu de que ela era mais ou menos, de que estava exposto na rua fazendo parte de uma cena que arriscava gratuitamente a integridade de sua reputação. À esquerda de Cristian a moça fumava calada, olhava uma janela acesa no alto do prédio em frente; ela parecia não se importar com o silêncio dele.
Cristian tentava puxar do repertório algum assunto que coubesse naquele tempo, mas no lugar disso saiu uma ordem:
- Vamos embora.
- Tem carro?
- Ônibus.
- Hum.
Subiram, pagaram e saíram quando ao mesmo tempo um furgão cor violeta estacionou, era a banda. Andaram por uns quinhentos, seiscentos metros até encontrarem um boteco.
Ele se senta e ela diz que vai lavar as mãos. Cristian pede uma caipirinha, e ela demora tanto que ele bebe tudo e depois chupa os gelos pensando em uma estratégia. Há um trio de velhos jogando buraco três mesas adiante. Enfim ela volta com um sorrisinho que seria delicioso se não estivesse tão vermelha; retocou a maquiagem e exagerou no blush, parece que foi esbofeteada no banheiro. Esperava um olhar de aprovação dele e ganhou.  Os velhos e o menino que prepara um x-egg na chapa olham para a bunda dela; lordose inumana que excita somente os iludidos. O odor-linguiça defumado dos dois e o perfume almiscarado de Maria – esse é o nome – invadiram o nariz de Cristian e por algum misterioso motivo aquela combinação mais a cor alaranjada das paredes e a expectativa de uma continuação aleatória o fizeram sentir-se mais disposto.
Profissão, idade etc., conversa chocha; mais caipirinha, mais conversa, mais caipirinha. Nada prosseguia por muito tempo, Maria parecia meio desinteressada por qualquer coisa vinda dele, exceto a caipirinha. A sorte cega vai cessando. Chega a desinibição e ele diz:
- O que você tava fazendo lá?
- Uma menina do meu trabalho tá fazendo aniversário hoje – era mentira –, só passei pra dar um oi. Mas eu é que te pergunto.
- Que pergunta o quê?
- Foi lá por quê?
- Curiosidade, só.
- Assim, do nada?
Ele tira aquela moeda de um real do bolso e põe na mesa, essa é a sua resposta. Ela olha para a cara dele com uma expressão confusa que lhe significou o que se passa com esse coitado.
- E?
- Tirei cara ou coroa. Deu coroa, daí eu fui.
Dito isso, feito isso, Maria sentiu como se tivesse escutado uma confissão difícil, como se uma rodela de franqueza tivesse sido depositada naquela mesa grudenta. Sentiu mas não entendeu as coisas dessa forma, não conseguia classificar nada com exatidão, estava bêbada e determinada a prosseguir embriagada. No esforço conseguiu julgar que aquilo que transcorria era a melhor coisa que poderia se esperar daquela circunstância. Com isso deveria ter surgido todo aquele sentimentalismo que se experimenta nas pequenas coisas ignoradas, mas na hora h continuar não sabendo com quem estava lidando pareceu ser o detalhe mais certo a se apegar... Estimulante, talvez. O que saiu da boca dela não condisse com a sensibilidade que Cristian quis compartilhar.
- Mas por que deixa a sorte decidir as coisas por você?
- Quis tentar alguma coisa diferente, nunca fiz isso.
- Mesmo sabendo que não ia gostar.
- Não disse que não gostei.
- Eu não faria isso.
- O tédio faz a gente se surpreender. E ainda não sei se gostei ou não.
- Ah não?
- Não.
- Quando vai descobrir?
- Quando me disser por que me chamou.
Ovo estalando na chapa, televisão e pigarreadas. A princípio Maria não respondeu. Ficou esboçando qualquer coisa que desse a chance de ampliar as perspectivas, dele e dela. Cristian era difícil e cansava sem querer.  
Estava tarde, sem ônibus e Maria mirava aquela moeda com um olhar esbugalhado que nada dizia. Talvez tanta bebida, talvez... ovo estalando na chapa, televisão e pigarreadas... Saltou por cima do pudor indo para o finalmente. Ela não se importava, desmanchou o marasmo com:
- Tô a fim de foder.
As pálpebras de Cristian ficaram trêmulas e seu lábio empalideceu de susto. Repetiu interrogativamente aquela palavra como quem não acreditou no que ouviu e fez um gesto afirmativo com a cabeça levantando com pressa.
- O tédio faz a gente se surpreender, né? – disse Maria com um olhar embriagado de deboche e imitando a voz de Cristian.
Ele, com o orgulho levemente ferido, engoliu seco e pagou as bebidas.
Sexo lacônico no hotel da esquina. Dez a hora. Roupas, mofo, bojo, abajur, mãos, línguas, pelos descoloridos, reação, chupões, gemidos sequenciais e onomatopeias cutâneas. Vinte minutos e gozo obtuso. Não conversaram depois, nem durante. Sorriem suados, ofegam, depois passa. 
“O que se ganha ao foder?”.
Seis e pouco. Maria dorme com a boca no travesseiro. Ele pensa em quem já se deitou ali e se levanta enojado. Cristian observa consternado o espaço vago no espelho do quarto, depois lava o rosto e vai embora com aquela dúvida sobre foder. Como se estivesse pagando uma puta e torcendo para que ela assim notasse, deixou a moeda na cabeceira junto com a chave do quarto. Pagou a mais na recepção para que ela pudesse dormir um pouco mais.
São Bernardo do Campo: domingo de feira e Cristian Pereira Cruz de Sábado. E Maria prefere acreditar que está apenas curtindo a vida.   


   
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