quarta-feira, 27 de junho de 2012

Joni Mitchell - "Blue" (1971)


Recentemente escutei Blue (1971) três vezes seguidas e não encontrei um erro sequer, nada fora do lugar, nenhuma nota mal executada. A qualidade das faixas sempre me impressiona. Isso sem contar toda aquela sensibilidade em ebulição durante seus 35 minutos e poucos. São canções que emocionam facilmente qualquer um disposto a relaxar e curti-las, seja pelas melodias, seja pelas letras ou por qualquer outro detalhe. Analisando a esfera da música folk/pop rock, é muito justo afirmar que pouquíssimos artistas alcançaram excelência semelhante à deste álbum.

Naquela época de sua carreira, Joni Mitchell passava por mudanças significantes. Por conta do grande sucesso alcançado nos anos anteriores ao Blue, a cantora, sempre avessa à grandes públicos, havia decidido parar de se apresentar por um tempo. Além disso, ela havia terminado um longo relacionamento com Graham Nash, do grupo Crosby, Stills, Nash & Young e ex-The Hollies. Com isso, ela tirou umas férias e foi à Europa para acalmar os ânimos, e foi lá que ela escreveu quase todas as canções do álbum.

Em uma entrevista para a revista Rolling Stone em 1979, ela disse: “Blue foi um momento decisivo de muitas maneiras. No Blue, quase não há uma nota desonesta nos vocais. Naquela época da minha vida, não possuía defesas pessoais. Me sentia como papel celofane num maço de cigarros. Sentia como se não tivesse segredos do mundo, e não pudesse fingir que minha vida era forte. Mas a vantagem disso na música era de que não havia defesas ali também”.

É justamente essa vulnerabilidade que seduz o ouvinte logo na primeira audição. Em Blue, Mitchell interpreta temas reflexivos como relacionamentos, solidão e anseios pessoais de modo tão honesto que passamos a aceitar a melancolia como um ingrediente extremamente agradável.

Apesar de vez ou outra conter nas faixas alguns músicos a mais (dentre eles, James Taylor nos violões), Blue é basicamente a voz de Joni Mitchell acompanhada por seu piano, violão ou às vezes um instrumento chamado dulcimer. O disco é essencialmente folk, mas nota-se também uma pitada de jazz nas estruturas musicais, detalhe que culminaria anos depois em álbuns com forte sonoridade fusion, como o Hejira, de 1976.

Faixas

O disco começa com “All I Want”, perfeita para um início. Aqueles acordes de dulcimer misturados com a melodia entram na cabeça e custam a sair. A música, que como sugere o título trata de anseios pessoais, também parece ser um relato de alguém buscando uma identidade.

Depois vem a ingênua “My Old Man”. Apoiada pelo piano, Mitchell fala dubiamente sobre seu antigo relacionamento com Graham Nash, de modo que os versos exaltam os momentos em que ele esteve presente e o estribilho cai para o vazio de estar sozinha.

Sabe-se que “Little Green” foi composta em 1967, portanto fica sendo provavelmente a canção mais antiga do álbum. Mesmo estando um pouco distante das demais composições em relação a tempo, a música, a mais folk dentre todas, se encaixou perfeitamente à atmosfera de Blue. Por outro lado, “Little Green” contém a letra mais subjetiva do disco, que permite diferentes interpretações.

Já em “Carey” Mitchell está acompanhada de uma banda acústica e vocais fazem harmonias, a alegria dá as caras no tom desta faixa com jeito de road movie. “Carey” fala sobre despedidas de maneira leve. É evidente nesta composição a influência de suas férias na Europa quando ela canta: “Maybe I'll go to Amsterdam, or maybe I'll go to Rome”.

“Blue, songs are like tattoos”. Essa frase justifica toda a densidade do disco. O tal Blue que ela cita é David Blue, um expoente compositor de música folk da cena de Greenwich Village, em Nova Iorque. A canção pode ser interpretada como um ponto de vista da desesperança que assolou grande parte daquela geração no pós-hippie. Piano e voz fecha o lado A.

A honesta “California” talvez seja a melhor canção sobre esse estado norte-americano. Segue a linha nostálgica e road de “Carey”, além da banda acústica que a acompanha e o tom levemente descontraído.  

A batida com afinação aberta de “This Flight Tonight” lembra bastante o que ela vinha fazendo anteriormente em sua carreira, como no hit “Big Yellow Taxi”. Dá a impressão de que esta seja a faixa mais descompromissada de Blue, o que dá uma sensação de respiro entre toda a emoção das demais músicas. Curiosamente, o grupo escocês Nazareth regravou alguns anos mais tarde “This Flight Tonight” de modo completamente distinto, versão que vale a pena ser conferida.

A partir de “River”, chegamos à parte mais dolorosa de Blue. “River” é atemporal, sua melodia é irresistível e funcionaria para qualquer época após seu lançamento. Dizem que nesta faixa, Joni Mitchell quis abordar sobre seu desconforto com o sucesso e a vontade de querer escapar da fama.

A preferida de muita gente, “A Case of You” permanece sendo um dos maiores clássicos da carreira de Mitchell. Regravada por uma série de cantores como Prince, Tori Amos e James Taylor (que participou das gravações), a música é explicitamente voltada para seu relacionamento com Graham Nash e escancara a habilidade da compositora em escrever letras capazes de proporcionar ao público uma identificação imediata com algum momento da vida.  

Blue encerra com a melhor performance de Joni Mitchell no álbum. “The Last Time I Saw Richard” é a mais difícil de escutar, é preciso passar por todas as outras para chegar a esta obra-prima e assimilá-la bem. Sua letra corrida, novamente acompanhada apenas por piano e voz, parece ser sobre alguém caindo na real e tendo que mudar de postura para encontrar a felicidade. É bem claro que tudo foi feito para si mesma.

Repercussão e legado

Blue foi um grande sucesso de crítica e público, chegando a vender mais de um milhão de cópias. Nas paradas de sucesso, Blue alcançou o 15º lugar na Billboard e o 3º nas paradas inglesas. “Carey” foi selecionada para ser o single de promoção.

Muitas vezes, o álbum é citado como um dos melhores de todos os tempos, como na lista de 2003 da Rolling Stone dos melhores discos, obtendo a 30ª posição. Recentemente, a revista fez outra lista, desta vez com os 50 melhores álbuns femininos da história da música, e Blue ficou em 2º lugar.

Muitos afirmam que por ser delicado demais é um LP mais voltado para o público feminino. Pura bobagem. Blue se encaixa perfeitamente com qualquer apreciador do bom folk, pop rock ou para qualquer um disposto a se emocionar com música que não morre com o tempo.

Ficha técnica

Blue

Lançamento em 22 de junho de 1971

Selo: Reprise

Lado A
1. "All I Want" – 3:32
2. "My Old Man" – 3:33
3. "Little Green" – 3:25
4. "Carey" – 3:00
5. "Blue" – 3:00

Lado B
1. "California" – 3:48
2. "This Flight Tonight" – 2:50
3. "River" – 4:00
4. "A Case of You" – 4:20
5. "The Last Time I Saw Richard" – 4:13

Joni Mitchell – dulcimer, violão, piano e vocais
Stephen Stills – baixo e violão em "Carey"
James Taylor – violão em "California", "All I Want" e "A Case of You"
Sneaky Pete Kleinow – pedal steel em "California" e "This Flight Tonight"
Russ Kunkel – bateria em "California", "Carey" e "A Case of You"

Engenheiro de som – Henry Lewy
Direção de arte – Gary Burden
Capa – Tim Considine

domingo, 17 de junho de 2012

“Dançando Conforme a Música”, estreia de Mario Rossi

Com esta crescente onda de one-man band por conta da tecnologia, muito do que se escuta desse tipo de artista autônomo são sons mais experimentais, híbridos, que só ganhariam vida de fato por meio de apenas uma cabeça comandando tudo. Mas Dançando Conforme a Música certamente segue na contramão disso.

Acima de tudo, pode-se dizer que este primeiro álbum de Mario Rossi é um registro cuidadoso, pois apesar de ter feito o que lhe deu na telha, das composições à produção, Rossi teve muita cautela ao valorizar a espontaneidade rústica do rock ‘n’ roll e do blues, detalhe que não é fácil de obter sozinho, sem uma banda de apoio.

Ao longo de mais ou menos um ano, Mario se dedicou a este projeto solitário de compor e gravar todos os instrumentos. Apenas em alguns poucos momentos há a participação de mais alguém nas faixas.

“Busquei fazer o que gosto de ouvir nos clássicos. O disco foi acontecendo naturalmente. Não me prendi na ideia de soar atual”, comenta o músico. “Além disso, fui muito criterioso com tudo. Valorizei a música e a simplicidade na composição, das letras aos riffs de guitarra. Já na gravação, valorizei o instrumental despretensioso, natural e sem emendas – como todo disco de blues e rock ‘n’ roll deve ser”, ressalta.

Dançando Conforme a Música é uma costura meticulosa de referências que pouco se encontra no atual rock. Nas faixas pode ser percebida a influência direta de bandas como The Rolling Stones, The Faces e Derek and The Dominos. “Também sou grande fã do rock nacional. Tutti Frutti, Barão Vermelho, Ultraje a Rigor, Raul Seixas etc. O disco tem todas essas referências”.

O álbum é sóbrio e divertido, um exemplo de como deve se construir um rock básico, orgânico e de fácil audição. Há equilíbrio na sonoridade, de forma que a crueza do álbum passa longe do saudosismo ao mesmo tempo em que não se assemelha com o contemporâneo.

O interessante trabalho de guitarras que passeia por todo o disco flui muito bem e em sutileza e dedicação é muito acima do que se encontra atualmente. Mario não faz restrições aos improvisos quando necessário e ao mesmo tempo não apela para um peso sem sentido. As sólidas bases de baixo e bateria, assim como as melodias, atingem rapidamente o ouvinte pela assimilação imediata e escancara a capacidade de Mario Rossi não só como guitarrista, mas como um músico de mão cheia e ainda com um longo caminho para explorar.

Abaixo, Mario comenta sobre as nove faixas de seu álbum de estreia:

“Tudo tem seu Preço”
“Essa eu fiz no final de 2008, melhor dizer que surgiu, pois em uns dez minutos a composição estava pronta. A letra é um ponto de vista bem parcial sobre ação e reação, em pensamento e atitude”.

“Mesmo Distante”
“É a mais pop do álbum, mas embora tenha uma melodia mais comercial, fiz questão de deixá-la soando setentista o máximo que pudesse, como naquelas gravações ao vivo. Os hits dos álbuns do Peter Frampton foram grandes influências pra essa música em todos os sentidos”.

“Dançando Conforme a Música”
“Eu tinha a letra praticamente toda pronta e o riff de guitarra. Não era o título inicial do álbum, mas como tudo foi acontecendo naturalmente, encaixou perfeitamente. Ela fala por sí. De uns tempos pra cá me dei conta que mudei nesse aspecto, digo, não temos controle das coisas, parei de planejar demais isso ou aquilo, então me dou por feliz em acordar e ter um bom som de blues pra ouvir”.

“Quem me Escuta”
“Essa é um lado B do Barão Vermelho, uma música bem legal. A primeira vez que ouvi já tive vontade de tocá-la nessa pegada mais cadenciada. O Frejat me autorizou de primeira, fiquei muito feliz com isso. Há aquele trecho na letra, que é: ‘Eu tenho um plano e não canso de correr atrás, e essa espera tira a minha paz’. Claro que contraria o assunto de "Dançando Conforme a Música", mas essa contradição acabou caindo bem”.

“Surreal”
"Uma das que mais gosto. Ela relata um amor platônico, mas de forma descontraída, sem sofrimento. A melodia e a parte instrumental são bem contagiantes, o que colabora pra essa qualidade. Os solos dividos de guitarra e piano dão aquele ar nostalgico de piano bar dos anos 1950, tipo aquele som das esquinas de Manhattan".

“Minha Rede Social”
"Essa fiquei em dúvida de colocar no álbum. Primeiro porque não sou fã dessas coisas de internet. Embora use, mas para contatos e o necessário somente. Enfim, ela poderia quebrar o contexto do restante do álbum por ser uma letra muito atual,  temporal demais. É sobre esses casos de mudança de comportamento no mundo virtual, essa coisa de autopromoção, guerra de egos etc."

“Romance Indefinido”
"Foi a que deu mais trabalho. Primeiro surgiu o riff, eu adorei, tinha que fazer alguma coisa com ele. Eu tinha mais ou menos esse tema em uma ideia de letra e depois surgiu o estribilho. Levou um tempo pra adaptar letra e melodia".

“Ela Era só uma Garota Querendo Aprovação do Mundo”
"Blues nu e cru. Essa tambem é sobre comportamento. Foi inteira composta durante as gravações. Notava isso em uma garota em especial, tipo aquela coisa ‘acharam isso ou aquilo de mim’. Mas tem muito de outras pessoas que eu incluí tambem. Enfim, é aquela coisa básica de viver de aparência e não de essência, pose por status".

“Novos Ares”
"Outro riff que surgiu pra mim. Maravilhoso! Preferi deixar só voz e violão. Foi gravada ao vivo, da melhor forma. Dois takes e pronto. A letra é bem simples e introspectiva, é sobre aquela parte nossa que morre todo dia e nasce outra de acordo com experiências, aprendizados, mudanças".

O álbum está disponível na íntegra no site oficial de Mario Rossi: http://www.mariorossi.com.br/.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Lima Barreto - “Os Bruzundangas” (1923)


Se hoje fosse publicado Os Bruzundangas, aposto que em muitos aspectos a obra não estaria fora de contexto. Mesmo depois de muito tempo, este livro de Lima Barreto (1881-1922) ainda carrega a mesma força no sentido de denúncia, mesmo que nele permeie um modo mais leve de relatar temas negativos, se comparado com outros trabalhos mais recentes e de conteúdo similar.

Publicado postumamente em 1923, Os Bruzundangas é um conjunto de crônicas sobre um país fictício, a República dos Estados Unidos da Bruzundanga. Esta nação hipotética contém basicamente os mesmos problemas encontrados no Brasil, e é nesse aspecto satírico que o autor se apega para condenar os problemas sociais, o que é uma característica muito presente em toda a obra de Lima Barreto. O termo ‘bruzundanga’ é um substantivo feminino que pode significar ‘burundanga’, que é o mesmo que ‘palavreado confuso’, ‘mistura de coisas imprestáveis’, ‘mixórdia’, ‘trapalhada’ ou ‘embrulhada’.


O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou por uns tempos naquele país e conheceu de perto os principais pormenores.  Ao longo dos capítulos, Barreto discorre sobre vários assuntos, dentre eles, a Constituição, a indústria, o nepotismo, o favorecimento aos políticos, a má educação, o setor defasado da saúde, a imprensa, além dos costumes do povo e da cultura (música, teatro, literatura etc.)

A maneira como ele aborda os problemas ainda é estritamente válida, fácil de ser adaptada para a nossa realidade. Além disso, o livro não se torna cansativo como alguns clássicos do mesmo período, tem pouco mais de 150 páginas e é capaz de conquistar o leitor menos acostumado com o estilo da época.

Mesmo com todo o humor e elegância, é bastante clara a denúncia para qualquer um que lê-lo, a crítica é incisiva. Para exemplificar, segue abaixo um trecho do sexto capítulo, “O Ensino na Bruzundanga”:

(...) Há casos tão escandalosos que, só em contá-los, metem dó.

Passando assim pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros diretores da República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e presunçosos do que quando para lá entraram. São esses tais que berram: “Sou formado! Está falando com um homem formado!”

Ou senão quando alguém lhe diz:

- Fulano é inteligente, ilustrado...”, acode o homenzinho logo:

- É formado?

- Não.

-Ahn! 

Nesse sentido de romance social, o autor, que também publicou Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), é tido como o pioneiro no Brasil, e ao mesmo tempo como o crítico mais ferrenho da República Velha na esfera artística.


Segundo o próprio Lima Barreto, ele se enquadrava num segmento denominado ‘literatura militante’, e dizia que tinha como objetivo fazer comunicar umas almas com as outras para reforçar a solidariedade humana, tornando os homens capazes de se entenderem melhor. E é fácil notar essa mensagem em Os Bruzundangas, afinal, basta rememorar o retrato brasileiro daquele período e seus respectivos personagens e compará-los com os personagens da obra. São caricaturas explícitas.

Vale a pena lê-lo por muitos motivos, mas, repito, compará-lo com os dias atuais e enxergar uma série de semelhanças esdrúxulas é o aspecto mais irresistível. Parece praga, da boa e da ruim.
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