domingo, 1 de dezembro de 2013

"Sobre Ninguém na Sua"


Ao longo dos anos você percorre por uma série de situações parecidas ou ao menos próximas de pouca variedade ou brilho. Ao longo dos tempos o tempo é mais rápido, um segundo depois ou no dia seguinte. As maneiras são as mesmas, os deslumbres são os mesmos; muda o protagonista, um perece e entra outro mais perecível. Alguns nos deixam na mão peculiarmente, surpreendendo a quem não se precaveu. Não é fácil perceber detalhes, não é divertido; achar sabor no que se vê, doce ou amargo ou qualquer bobagem. Texturas que se repetem, outras não mais. Eventos que estão por vir. Basicamente, é notável o frio que dá na barriga.
Lindas cores vibrantes que anima a população vestida de roupa leve e a previsão do tempo que não prospecta chover na garotinha voltando da escola de mãos dadas com a avó e em todo o resto da cidade. Nuvens branquinhas, garis varrendo a rua e amarelinhas desenhadas em tijolo no asfalto, do céu ao inferno; é assim que se vê um dia raro no ABC Paulista em que um menino no meio da rua empinando pipa encosta a linha na rede elétrica e morre assustando todo mundo que viu e não viu.
O choro da vizinha e o enigmático desespero da mãe, o pai a caminho, o amigo traumatizado e ele longe e seu ex-corpo de oito anos duro no chão. Resgate e imprensa cobrindo o defunto de todas as maneiras. Um jeito de surrealismo num dia lúdico de férias.
No aconchego a quilômetros de distância da cena, Santa Cecília, capital paulista. Do alto do segundo andar Cláudio vê o menino Cauê no jornal e sente uma profunda tristeza quando assiste a mãe do menino contando ao repórter os pormenores do que aconteceu. Cláudio nota a semelhança de seu próprio rosto quando criança, quando desobedecia a ordem de brincar na calçada e pulava alucinado por cima das lixeiras vazias e subia em árvores. Essas modas estão acabando aos poucos. O sentimento de comoção se dissolve quando ele escuta a notícia seguinte.
A alheia ligação entre esses dois cidadãos cessa quando Cláudio sai da frente da televisão e, como de costume, leva seu cão salsichinha para passear de coleira.
O cão caminha pomposamente ao lado do seu dono parecendo ter a certeza de que aquilo viria a ser a melhor parte do dia. Param na tenda de um chinês que vende pastel. O bicho come os farelos de massa e pedaços de tomates e cebolas do molho vinagrete grudados no chão enquanto Cláudio pede um pastel de carne. O pastel está pronto. Cláudio come usando uma mão enquanto a outra se sacode com a coleira; o cachorro se agita por conta de um pombo que também petisca sujeira no asfalto.
Cláudio sai da barraca de pastel. Duas mulheres passam por ele citando o menino eletrocutado: “Miiisericórdia... mulher do céu... que coisa foi aquela?”, dentre outros dizeres. Logo depois ele para para observa as manchetes na banca de jornal. O menino eletrocutado; o menino eletrocutado na boca do povo; o Menino Cauê nos periódicos, em fotografias, em texto, eletrocutado. O alarde é intenso, a ênfase incomoda e Cláudio pensa em dizer foda-se gratuitamente para o próximo que passar a seu lado comentando o incidente, mas prefere substituir o aborrecimento dizendo nada, como deve permanecer se comportando uma pessoa adequada.
As pessoas saturam o direito de se mostrarem emocionadas por alguma coisa e Cláudio não é capaz aceitar isso. Certamente estão de acordo em levar a sensação de choque junto com o menino até chegarem em casa e procurarem saber de mais alguma coisa pela qual viver. Cláudio fica chocado por ninguém demonstrar conhecimento de nada digno de mais importância, nada mais funesto ou de qualquer outra qualidade. Porém, para ele nada disso vale e vai até a casa lotérica para comprar uma raspadinha.
Ele chega lá. Um real: é o quanto custa a raspadinha. Raspa com a chave e ganha um real... naturalmente, mais uma raspadinha. Raspa com a chave, desta vez com um sentimento maior de fidúcia, e ganha cinquenta reais. Em toda sua trajetória lotérica nunca ganhara nada, por isso não consegue conceber que a sorte batera em sua porta duas vezes no mesmo dia. Mostrou a raspadinha premiada ao homem que operava o caixa, o qual estava assistindo a televisão pendurada no alto da parede. Deu a Cláudio o prêmio em duas notas de vinte e duas de cinco e balbuciou por cortesia protocolar um parabéns murcho quando ao mesmo tempo retomou o olhar para o noticiário com o menino eletrocutado protagonizando toda a programação. Taquicardia e palpitações e limite: Cláudio estoura retribuindo com xingamentos, grosserias, como se estivesse falando com toda a população local consolidada por inteira naquele pobre infeliz sem dolo de qualquer frustração alheia; afrouxa-se com a raiva de Cláudio e esboça um queixo trêmulo magoado. Até chega a dizer algo repreensivo, mas de tão frágil Cláudio não escuta nada. A mulher que estava na fila segurando um maço de contas a pagar expele um petulante e sussurrante “Ignorante!” e completa sua maldição com “Cretino!”. Absolvido de qualquer humanidade, o cão salsicha apenas põe a língua para fora sem maiores pretensões de ser nada além daquilo.
Cláudio vira as costas e respira fundo maldizendo seu caráter momentâneo, nunca havia falado com alguém assim na rua. Tem a certeza de que machucou alguém. Por outro lado sente-se cegamente realizado e discorre sobre quantas vezes havia sido a vez dele de ser a vítima de todo mundo.

“Basicamente, é notável o frio que dá na barriga”, conclui sozinho sem a ajuda de ninguém. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"Sobre Ganhos Banais e Revelações Incidentais"

Às quatro e meia da tarde houve um imenso e surpreendente desejo tolo quando do outro lado da rua uma vitrine empesteada de doces a preço único palpitou em meu caminho. Todas aquelas porcarias e não há como despercebê-las; receitas de morango, doce de leite, cereja, geleia, chocolate. Cinco reais por um pedaço do dia que vale a pena não nos aparenta ser tão caro assim. Então entro, sento e peço à moça que me atende uma torta holandesa e uma garrafa de água gelada sem gás. Talvez em um horário mais ameno a mesma moça agacharia debaixo do balcão para a câmera não acusá-la enquanto deliciosamente come um quindim numa bocada só. Por fim vejo o meu doce na mão da moça. Ele está mal representado numa espécie rasa de copo quadrado de plástico semelhante a um aquário de peixe beta, o qual me dá a impressão de que não conseguirei meter a colher nos cantos do fundo sem parecer um processo cirúrgico ou um mão de vaca que quer sugar cada centavo. Eu agradeço. Segundos depois a garçonete volta atrás e pergunta se eu aceito comer um salgado antes, peço uma empada de palmito. Só havia de frango. Aceitei assim mesmo. A empada chega com uma cor saudável. Mordo com vontade sem verificar a temperatura e concluo que está bastante quente. Engulo freneticamente o pedaço ao mesmo tempo em que expulso o vapor com uma fisionomia de angústia e afobação. O sabor é anulado pelo ardor e tudo o que posso sentir antes do bolo alimentar descer para o meu esôfago é um ingrediente desconhecido e intransigente, duro: um real fervido que no calor do momento me pareceu mais uma lisa e irregular azeitona preta. Bebo com rapidez a água para tentar anular a etapa anterior, mas minha língua já estava bastante queimada. Termino de comer o resto com pouca pressa, sem grandes pretensões de me sentir satisfeito por coisa alguma. Já estava feito. Paguei meu consumo e fui embora a tempo de descer aquela íngreme rua e encontrar no caminho três tipos diferentes de se pedir esmola; como na vitrine cheia de doces, escolhi a melhor alternativa e dei um trocado para o infeliz que lá estava sentado na guia com uma perna carcomida de perebas e uma bandana vermelha cobrindo a parte mais crítica, a qual ele ameaçou mostrar mesmo quando desviei o olhar. Do lado oposto cachorros faziam coisas de cachorro nas calçadas de comércios de coreanos e chineses e brasileiros, lá e cá: faziam amor complacente e engoliam sem vaidade restos de comidas sem pagar. Comida e custo, comida e custo... arroto constante que me fazia lembrar. E eu pensava em quão proveitoso seria existir daquele modo despretensioso, tendo apenas que dar em troca uma participação usual numa rua fedida precificando a minha própria sorte. Mas é tão besta raciocinar assim que nada daquilo fez muito sentido minutos depois; três reais a menos e eu já estava no metrô... Hora propícia para ficar calado ressaltando outros departamentos com o estômago reclamando e sacudindo. Ele queria me alertar do perigo iminente, mas me pareceu apenas uma forte crise de flatulência chegando enquanto meus sentimentos continuavam apontando para outro sentimento mais intrínseco que cansaço ou outra coisa aleatória. Nada que me dizia respeito, eu só queria ir pra casa. Minha indisposição ao lado de um senhor pardo com uma bíblia debaixo do sovaco e um rosto íntegro que quase imitei sem a intenção. Meu suor seco com dez ou mais mulheres de meia idade passivas ou o contrário e adolescentes uniformizados com blusões azuis e suas montanhosas mochilas nas costas. Suor seco deles, gosto da empada na boca indo e vindo e os vagões pareciam soltos. Coletivo munido de celulares em mãos de todos os tamanhos e cores e cheiros de coisas e lugares que me faziam ter a impressão de que eu estava mais limpo que os outros. Parecia que eu ia adoecer. Cheguei com um sorriso mental em frente ao portão de casa. Banheiro, cozinha, televisão e o alívio preciso em todas as partes do corpo; sem sapatos, meias, calça ou bagunça na sala. Um silêncio abafado me pôs relaxado no sofá para curtir aquele vazio ao mesmo tempo em que massageava minha própria testa. Recorri ao resumo do dia, recapitulei hora a hora com bastante facilidade enquanto dentro de mim algo desconhecido gradativamente me provocou calafrios como quando se declara para alguém ou quando está a ponto de ver uma catástrofe premeditada. O abdômen falando. Fui ao banheiro imediatamente para acabar com a dúvida. Em meio ao habitual, um timbre agudo e sólido estala na cerâmica da privada ao mesmo tempo em que paira uma súbita consolação intestinal. Verifico meio sem jeito de olhar e lá está o ingrediente. Nos olhos uma expressão de repúdio embaralhada pelo acúmulo desfigurado de refeições e o lucro imaculado. Imersos na água, bosta e moeda, cada coisa com seu devido nome e propósito. Um real de sempre, comoção de graça. Tirei-o dali, limpei e guardei na minha carteira com a intenção de dar a alguém sem mencionar sua trajetória. E ainda não escolhi essa pessoa.  

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

"Sobre Alimentar os Sentidos"



Abre a janela sem o propósito de achar o que nunca achara em outra paisagem, e está tão ensolarado que pouco importa; a grama se estende até a descida do morro. Só, sente o aroma de madeira e terra macia que tanto o faz feliz quando tudo se mistura perfeitamente no ar. Respira fundo e agradece por pensamento, pela afinidade bucólica, e volta a si ao olhar para os pés descalços que tocam o chão rústico da cabana: precisa cortar as unhas, mesmo. Vai à cozinha preparar um café e ligeiramente se comove pelo desalento que não existe naquele dia. Sente-se emocionado por nada em particular, talvez pela sorte fácil que desliza aos poucos e atravessa o coador indo direto ao bule, fumegando. Mira um porta-retrato solitário e sorri, pois já se foi o tempo de viver o tema ali representado: três irmãos fantasiados de mágicos. Não se culpa por ser aquele mesmo aluno indisciplinado, fez seu caminho longe, longe da professorinha. Seus olhos não escondem nada. Há quanto tempo não via seus amigos? Havia tempo? Existiam? Sabe se lá o que se passa com Frederico, com Rosa, com Alberto ou outro antigo episódio marcado por esses parceiros. Tem alguma pressa, portanto rasga o pão com as mãos e esquece-se da faca que usa para aguçar a espera de um proveito qualquer. Assim age Álamo em 22 de outubro, pois bem sabe que as chuvas começarão em poucos dias e precisará de mais temas e inspiração para acompanhá-las no dueto que tocou com maestria em sua cabeça neste veraneio. Fez sua cabeça com bastante calma até encontrá-la sã. Calça as sandálias para ter com a quaresmeira estufada de lindas folhas e flores uma prosa visual e plena de prosperidade; desce o morro com cinquenta passos tenros e enxerga algo que nos diz respeito, volta correndo em saltos dramáticos contar ao diário o que viu. Muda a caligrafia propositalmente, como se mudasse de voz ou de cor da pele, escreve um bilhete breve, rasga a folha do caderninho e lança para a varanda; o vento a leva morro abaixo e segundos depois o céu distante degrada de azul para verde como num daltonismo controlado. Seus pulsos enrijecem por uma boa gama de motivos emotivos e regozijos desconhecidos. Prefere não entender quando o vento sopra até sua escrivaninha improvisada um novo bilhete com os dizeres: “Estou esperando do outro lado”. Sente o semblante faceiro caindo pouco a pouco, dando lugar às jovens rugas que vão surgindo uma a uma, andando pelo rosto, pelos braços e fazendo cócegas estranhas quando cai um espelho ao lado da cama; não pode se assistir indo embora, encolhendo-se... sequer faz questão de notar quando se dissolve, como se isso fosse realmente possível a todo momento. Suporta e vive, de novo, pela segunda vez. Tudo ao mesmo tempo. E assim, sem tomar consciência, abanca mais uma chance de ser aquele que tanto almejava e xhxhxhxhxhhxhxssssssssssssssssssttts! Eis que chora por nascer de novo por meio de outra mãe. “Menino!”, diz uma voz feminina. Ele nada percebe, não mais. É quase outro, aquele que está no colo de uma desconhecida; a desconhecida o faz se sentir risonho, mas ele não sabe ao certo o que isso significa, não houve tempo para isso. Álamo perde o nome e todo o resto de antes para um corpo recém-nascido.
Créditos, a luz acende.
Greta sai do cinema confusa e com uma leve enxaqueca, mas feliz por ter pago apenas uma moedinha por aquilo. Por outro lado, já faz um bom tempo que ela pensa em Álamo esporadicamente e com a secreta vontade de tomar seu lugar, como se isso fosse possível. E é assim que todo bom filme deve ser.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"Sobre o Mau Uso das Pessoas"

O gosto da solidão não é oportuno. Talvez o tédio estivesse comendo tudo o que foi erguido com tanto cuidado nos últimos tempos. Tem a impressão de que vinha se arrastando para essa situação, peculiar efeito que o envolve.
Incômodo como um estomago cheio de comida, Cristian assim se sente, mas não alcança essa comparação. A preguiça incrustada no corpo é bastante e a imaginação dorme em algum lugar.
Sala sob 60 watts de luz incandescente, lâmpada insuficiente bastante perversa quando não se está disposto a curti-la. Por fim o amarelo domina a situação decisivamente como se fosse alguma revelação mais séria além de um vazio bobo. Não há alvos concretos.
Não quer ler, não quer fazer palavras cruzadas, não quer escutar música, não quer dormir. Sem telefone ou internet. A fuga pode estar na televisão, mas ela não fornece nada mais curioso do que os 60 watts por cima da cabeça. Os mantimentos da geladeira são margarina, leite, cenoura, cebola e café em pó. Café com leite o faria mais abarrotado, então também descarta as possibilidades da cozinha.
Talvez haja a vontade de fazer tanta coisa que não saiba por onde começar, questão de perspectiva. Em longo prazo, pode ir ao interior ver seu pai, pode ir à praia, cuidar de casa, comprar suas bobagens... Tudo o que gosta e o que precisa. Mas neste episódio em específico há nele algo a mais, uma tonalidade de irracionalidade, uma sensação biliosa que quer arrastá-lo para a tensão do desconhecido.
 Cheira à burocracia, baldeação e ABC Paulista. 25 anos, Cristian Pereira Cruz: 21h15 de sexta-feira; o coração bate forte e ele deve tomar uma atitude.
A arritmia que quase assusta o tira forçosamente do sofá. Vai ao banheiro tomar banho. Nu, observa-se no espelho com zelo e por algum motivo idealiza alguém desconhecido ao lado dele no espaço vazio do reflexo. Sente-se bonito. Entra no chuveiro e prossegue com a ideia de preencher o buraco vago que viu. Lava o corpo como se alguém fosse cheirá-lo ou tocá-lo, como se almejasse uma ocasião especial, como se estivesse vivo para todo o resto fora de casa.  Sovacos, pescoço e barriga devidamente ensaboados; xampu nos cabelos; alguém a mais no banho, alguém sem rosto e Cristian bonito para si. Encharca o tapetinho, molha todo o banheiro, escova os dentes, faz a barba com esmero, deixa um bigode para mudar, passa desodorante, põe a cueca, veste uma bela camisa e se perfuma estrategicamente; atrás das orelhas, pomo de adão e pulsos.
Separa o pente, o gel e eis um estalo mental que determina o que irá fazer. Pega uma moeda do bolso da calça caída no chão: coroa, eu vou; cara, fico. Coroa. Ele irá ao forró. 
Não é seu tipo de ambiente, casa de forró. Aliás, nunca pensou em ir a uma, e se algum conhecido o encontrar no caminho, definitivamente sentirá um profundo constrangimento. O que pensarão dele seus amigos engolidos pelas suas convenientes arrogâncias de quem acha que sabe do melhor?
Pega um ônibus que vai em direção ao centro. Desce um pouco antes.
Há uma pequena fila na entrada. Um pequeno aglomerado de carrinhos de lanches e vendedores de amendoim o chama atenção, mas quer entrar logo para acabar com a curiosidade. Uma faixa verde limão pendurada entre dois postes anuncia em letras rosa choque para Deus dará:
16/11 - SEXTA DO ESPETINHO: KAFTA E LINGUIÇA À VONTADE
BANDA KERO MAIS
HOMEM R$ 10
MULHER R$ 5 (GRÁTIS ATÉ MEIA-NOITE)
Está nervoso, não sabe ao certo o que está fazendo ali. Sente-se como um imbecil e as pessoas que ali estão parecem notar o que ele é. Para ele isso está bem claro. Umas mulheres de trinta e poucos olham para ele, talvez contemplando sua vulnerabilidade com algum sentimento incógnito. Quem sabe. O nervosismo aumenta, no fundo está apavorado. Paga os dez reais a uma senhora numa cabine construída de Eucatex. Ganha uma comanda de consumo.
Como na quinta-série, como quando alguém acaba de entrar numa sala de aula cheia de pessoas ameaçadoramente novas, ele passa pelo segurança, sobe uma escada e se depara com um salão tocando um som que lhe é familiar, mas não consegue se lembrar do nome da música. É um forró alucinado que está sendo distorcido pelos alto falantes, e é evidente que um teclado emula o acordeom e a bateria, parece videokê, mas ninguém dá a mínima para esse detalhe. Faz força para entrar no clima do ritmo, mas o corpo continua rijo. A banda ainda não subiu ao palco. Todo mundo está com um espetinho na mão. É um povo agitado que realmente transmite alegria. Exaustor, pelo amor de Deus. A fumaça da churrasqueira instalada em um dos cantos do salão invade a pista como se fosse efeito de uma maquina de gelo seco; há tanta gente querendo mais espetinho que ele nem tenta pegar o seu. Há um mosaico asqueroso com vários pedaços de carne e varetinhas distribuídos no chão. Cristian se vê exposto, não sabe para onde correr, procura se ocupar com alguma coisa para não continuar parecendo um trouxa exclusivo. Pede uma cerveja para um barman de olhar intrépido e cara de boliviano que parece estar à espera de alguma bobagem pronta para eclodir. Cristian vasculha a direita e a esquerda tentando achar o motivo daquela feição, depois recua e observa se há alguma mulher que lhe agrada observar. Todo mundo pede ou catuaba com energético ou vodca com energético ou uísque com energético. O que há de tão especial nisso?
Uma estranha mistura de sentimentos abusa de Cristian, parece que a satisfação não chega da mesma forma como chega aos demais; experimenta uma forte palpitação no peito que vem a ele como uma monstruosa amostra de timidez. Tudo escurece e apenas um canhão de luz negra enfeita o ambiente; quem está de branco ou algo parecido se destaca gritantemente. O povo aprova a quase penumbra com um grito uníssono e dançam, bebem ainda mais e comem menos espetinhos. Uma dúzia de calças brancas feminicoladas o excita, aqueles quadris sugestivamente se movendo para lá e para cá, sinuosamente: dá para ver as calcinhas. Ele experimenta uma ereção. Os homens estão praticamente de uniforme, todos vestidos iguais: polo com números aleatórios e brasões, e jeans cheios de remendos e zíperes estratégicos.
Mais de meia hora se passa e ele se pergunta por que não consegue ficar tranquilo. Até tenta alguns movimentos, mas prefere sentar em um banco perto dos banheiros bebendo sua cerveja.
Sem se dar conta, Cristian boceja e perde o interesse pelas bundas de Lycra. Na busca por uma posição confortável, por fim enterra as duas mãos nas laterais da cabeça e apoia os cotovelos no joelho.
Alguém sai do banheiro feminino. Ela pergunta quase gritando:
- Tá bem?
- Por quê?
- Ah, sei lá.
- Pareço tão derrotado assim? – retruca mais alto ainda, meio assustado, mas contente por alguém ter feito aquela pergunta.
- Não sei, não consigo ver o seu rosto direto nesse escuro.
- Também não vejo o seu.
- É que você tá sentado aí todo torto. Bebeu demais, foi?
- Ah, só não quero dançar.
- É, não tem cara de que gosta de forró.
- Mas você disse que não tá conseguindo me enxergar.
- Mas se gostasse faria um esforço pra dançar, pelo menos.
- Verdade.
- Estava indo fumar, mas não queria sair sozinha.
Ele foi, mesmo não entendendo aquele medo de sair sozinha. Por fim a viu. Razoável. Morena loira quase magrela bonitinha. Parecia ser uns cinco anos mais velha que ele. Dava para descobrir um ou outro encanto ali, pensou. O salto plataforma a fazia andar torto e vulgar. Carros e chiado e cafonice e pele e postes e risadas e pipoca e sotaque não eram mais tão audaciosos. Por um breve momento Cristian se sentiu dono de uma sorte tão cega que até esqueceu de que ela era mais ou menos, de que estava exposto na rua fazendo parte de uma cena que arriscava gratuitamente a integridade de sua reputação. À esquerda de Cristian a moça fumava calada, olhava uma janela acesa no alto do prédio em frente; ela parecia não se importar com o silêncio dele.
Cristian tentava puxar do repertório algum assunto que coubesse naquele tempo, mas no lugar disso saiu uma ordem:
- Vamos embora.
- Tem carro?
- Ônibus.
- Hum.
Subiram, pagaram e saíram quando ao mesmo tempo um furgão cor violeta estacionou, era a banda. Andaram por uns quinhentos, seiscentos metros até encontrarem um boteco.
Ele se senta e ela diz que vai lavar as mãos. Cristian pede uma caipirinha, e ela demora tanto que ele bebe tudo e depois chupa os gelos pensando em uma estratégia. Há um trio de velhos jogando buraco três mesas adiante. Enfim ela volta com um sorrisinho que seria delicioso se não estivesse tão vermelha; retocou a maquiagem e exagerou no blush, parece que foi esbofeteada no banheiro. Esperava um olhar de aprovação dele e ganhou.  Os velhos e o menino que prepara um x-egg na chapa olham para a bunda dela; lordose inumana que excita somente os iludidos. O odor-linguiça defumado dos dois e o perfume almiscarado de Maria – esse é o nome – invadiram o nariz de Cristian e por algum misterioso motivo aquela combinação mais a cor alaranjada das paredes e a expectativa de uma continuação aleatória o fizeram sentir-se mais disposto.
Profissão, idade etc., conversa chocha; mais caipirinha, mais conversa, mais caipirinha. Nada prosseguia por muito tempo, Maria parecia meio desinteressada por qualquer coisa vinda dele, exceto a caipirinha. A sorte cega vai cessando. Chega a desinibição e ele diz:
- O que você tava fazendo lá?
- Uma menina do meu trabalho tá fazendo aniversário hoje – era mentira –, só passei pra dar um oi. Mas eu é que te pergunto.
- Que pergunta o quê?
- Foi lá por quê?
- Curiosidade, só.
- Assim, do nada?
Ele tira aquela moeda de um real do bolso e põe na mesa, essa é a sua resposta. Ela olha para a cara dele com uma expressão confusa que lhe significou o que se passa com esse coitado.
- E?
- Tirei cara ou coroa. Deu coroa, daí eu fui.
Dito isso, feito isso, Maria sentiu como se tivesse escutado uma confissão difícil, como se uma rodela de franqueza tivesse sido depositada naquela mesa grudenta. Sentiu mas não entendeu as coisas dessa forma, não conseguia classificar nada com exatidão, estava bêbada e determinada a prosseguir embriagada. No esforço conseguiu julgar que aquilo que transcorria era a melhor coisa que poderia se esperar daquela circunstância. Com isso deveria ter surgido todo aquele sentimentalismo que se experimenta nas pequenas coisas ignoradas, mas na hora h continuar não sabendo com quem estava lidando pareceu ser o detalhe mais certo a se apegar... Estimulante, talvez. O que saiu da boca dela não condisse com a sensibilidade que Cristian quis compartilhar.
- Mas por que deixa a sorte decidir as coisas por você?
- Quis tentar alguma coisa diferente, nunca fiz isso.
- Mesmo sabendo que não ia gostar.
- Não disse que não gostei.
- Eu não faria isso.
- O tédio faz a gente se surpreender. E ainda não sei se gostei ou não.
- Ah não?
- Não.
- Quando vai descobrir?
- Quando me disser por que me chamou.
Ovo estalando na chapa, televisão e pigarreadas. A princípio Maria não respondeu. Ficou esboçando qualquer coisa que desse a chance de ampliar as perspectivas, dele e dela. Cristian era difícil e cansava sem querer.  
Estava tarde, sem ônibus e Maria mirava aquela moeda com um olhar esbugalhado que nada dizia. Talvez tanta bebida, talvez... ovo estalando na chapa, televisão e pigarreadas... Saltou por cima do pudor indo para o finalmente. Ela não se importava, desmanchou o marasmo com:
- Tô a fim de foder.
As pálpebras de Cristian ficaram trêmulas e seu lábio empalideceu de susto. Repetiu interrogativamente aquela palavra como quem não acreditou no que ouviu e fez um gesto afirmativo com a cabeça levantando com pressa.
- O tédio faz a gente se surpreender, né? – disse Maria com um olhar embriagado de deboche e imitando a voz de Cristian.
Ele, com o orgulho levemente ferido, engoliu seco e pagou as bebidas.
Sexo lacônico no hotel da esquina. Dez a hora. Roupas, mofo, bojo, abajur, mãos, línguas, pelos descoloridos, reação, chupões, gemidos sequenciais e onomatopeias cutâneas. Vinte minutos e gozo obtuso. Não conversaram depois, nem durante. Sorriem suados, ofegam, depois passa. 
“O que se ganha ao foder?”.
Seis e pouco. Maria dorme com a boca no travesseiro. Ele pensa em quem já se deitou ali e se levanta enojado. Cristian observa consternado o espaço vago no espelho do quarto, depois lava o rosto e vai embora com aquela dúvida sobre foder. Como se estivesse pagando uma puta e torcendo para que ela assim notasse, deixou a moeda na cabeceira junto com a chave do quarto. Pagou a mais na recepção para que ela pudesse dormir um pouco mais.
São Bernardo do Campo: domingo de feira e Cristian Pereira Cruz de Sábado. E Maria prefere acreditar que está apenas curtindo a vida.   


   

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

"Sobre o Baixo Valor Perdido no Chão"

A céu aberto na Avenida Paulista.
O tom seco de saltos e sapatos arrastando poeira para lá e para cá sem culpas em relação a isso. São objetos, somente. Percussão estrondosa ao pé do ouvido do chão que esconde o metrô perfurando a pressa logo abaixo. Nada disso pode significar qualquer coisa para quem caminha ou é capaz de caminhar; nada disso pode ser considerado interessante para quem respira o ar da tarde próxima ao semáforo próximo ao ponto de táxi próximo da noite próxima das 18 horas. Buzinas de motociclistas que costura carros, seus oponentes. Um inferno para trafegar e estacionar, e não importa a hora, todo mundo sabe disso, não é preciso estar lá. Tudo irrelevante para quando não se dorme e o sono é supérfluo... para ela, a moeda: para ela é assim.
Calor mentiroso acobertado por uma nuvem sem cor, apenas; um invólucro enorme e magoado por uma série de pretextos poluentes e climáticos do coração econômico do país. Será que isso um dia muda? A moeda, pra ela é assim: arranhões sem dor, arrastões inocentes e passos alheios espremendo tudo debaixo dos pés. O metal toca o asfalto, toca a sujeira, sem perder seu real valor. Como quando alguém mata formigas ao caminhar, alguém as pisoteia sem tomar conhecimento do que acabou de fazer. Para a moeda é assim, quase sempre.
Fácil e acessível como um pequeno furto caído próximo à guia que separa a tranquilidade do atropelamento na via expressa sem ninguém notar a tensão entre as duas possibilidades. A céu aberto na Avenida Paulista e nada faz sentido a não ser quando por ali passa Aquele ou Aquela, impregnados de características típicas. As roupas bacanas do sujeito bacaninha que aparenta ter uma vida completa. Os óculos gigantes da garota quase feia com um jeito nojento e empolado de andar mascarada e segura de si. Os cães de raça, os vira-latas. Pessoas simples, colegas do cotidiano... bonitos, feios e simpaticamente ordinários; aí sim está resguardado o melhor – e para eles o melhor está resguardado em algum lugar não tão longe de lá.
Procura-se a meada do nexo enquanto simultaneamente, sem assumir, pessoas dedicadas e raras procuram sorrisos naturais desvanecendo entre coisas opostas que se vê por aí. Não se sabe como se dá abertura a isso, mas é o que acontece nesta tarde enquanto para alguma coisa qualquer é necessário permanentemente valer cem centavos de real: um olho monetário no chão podendo fazer a alegria de alguém. Pedestres, caminhos sinuosos e retilíneos de um mar de gente que carrega o corpo para se desgastar por obrigação nos quatro cantos da cidade. Não se ouve nomes, não se ouve reclamações. Ninguém é dono do que diz ter. Ao menos na calçada, um infalível valor pendente espera ser gasto como sempre.
São Paulo da garoa faz jus ao apelido garoando sem grande vaidade, acostumada. Chuva fina sobre várias porcarias e tesouros no chão. Só resta maldizer o molhado que vem de cima desfazendo penteados e determinando o fim da tarde.
A céu aberto na Avenida Paulista e alguém que caminha como quase todo o fluxo: alguém com um nome e munido de guarda-chuva e indiferença sorri por dentro ao contemplar a própria sorte e extrai do chão a solução do conforto e completa a passagem do ônibus que agora deve pegar para fugir da chuva que começa a arquitetar uma trama mais séria.
Amanhã a catástrofe virá a ser comentário, as calamitosas negligências que dão as caras ano a ano, como se fosse Natal, Páscoa ou Carnaval: a enchente; os desmoronamentos, longe da Avenida Paulista.
E visto que é trivial correr aleatoriamente para qualquer canto a favor da própria vida, visto que vez ou outra não há motivos compassivos que nos permitam olhar para o chão ou para o céu com a intenção principal de observar por onde se passa dia a dia, é possível garantir que há gente em pé com olhar horizontal que anula a tradicional paisagem e suas probabilidades abertas...
A céu aberto na Avenida Paulista. Seja lá o que for, vale ser inserido nesse amontoado de definições. E nenhum drama maior domina quaisquer ações civis enquanto tudo for invisível.

"Sobre Abalos"




Ela pede com gestos e com o rosto reminiscente para ele perder a cabeça de uma vez sem pensar, mas aí ele se trai e põe as mãos nela obedecendo aos sinais: agora ele é um cafajeste. Quadril, cintura. A bunda dela, por meio do tato, é um delicioso amontoado irremediavelmente macio de vontades que lhe cutucaram o pensamento por um par de meses ou mais. O beijo dele é aflito e aquela barba irrita a pele do jeito que ela imaginava e queria que fosse. 
Morre a curiosidade como morre acima deles a luz do poste que pisca uma sequência perturbadora como pisca a informação do outdoor que arranha parte da cena como arranha o chão os tilintantes cacos de vidro que ladeira abaixo deslizam inevitavelmente como desliza o cheiro da dama-da-noite da esquina que ano a ano cresce como cresce a mesma indiscrição que dá início a toda infidelidade. Aglutinação de enfeites estranhos que tornaram aquele maldito momento excepcional para os dois, Carla e Thiago. Morre tudo isso em torno de um beijo lento, sem promessas.
Marido de Carla conta as despesas do mês na mesa da cozinha. Esposa de Thiago pinta as unhas de violeta enquanto assiste novela.
Os fatos prosseguem remoendo nas cabeças antes do conhecimento de todos. Thiago volta para casa com o cheiro de Carla esparramado na roupa e no corpo. Carla faz planos em segredo como fazia bem antes do beijo, o qual ainda é sentindo naquelas duas bocas. Gosto delicado de saliva com ruptura.
Thiago põe os pés dentro de casa saboreando um natural sentimento de culpa. Com medo de que sua mulher descubra, ele apenas diz de longe um olá meu amor e corre para o banheiro dizendo que está apertado. Toma banho e lava tudo cuidadosamente para não restar vestígios. Joga a roupa suja no fundo do cesto para se misturar com o suor das outras.
Quando volta à sala, ela põe a mesa e eles jantam uma macarronada em meio a perguntas do cotidiano. Tudo é cenográfico, morno e protegido. Por dentro dos dois dói lentamente o tédio que não sabem como liquidar. Ela nem quer mais aquilo, e é difícil por um ponto final quando não se tem a coragem necessária. Mais fácil esperar pela catástrofe. Assistem ao jornal, um seriado e depois vão dormir sem ter assunto para depois.
Carla chega e vê seu marido sentado calculando o orçamento. O beijo ainda repercute no pensamento e ela precisa continuar aquilo seja lá como for. Puxa o marido, beija o pescoço dele, põe a língua em sua boca e acendem. Com efeito, transam rapidamente sobre a mesa cheia de recibos e cartas abertas.
O resto da noite prossegue quase usual, com uma leve alteração quando, aproveitando uma disposição sem propósito, eles repetem o sexo. Em ambas as vezes ela imagina Thiago, enquanto o marido faz tudo por fazer, já bastante enojado do sexo conjugal. Deve ter os seus motivos.
Carla faz o dia parecer mais agradável naquela repartição. Está mais bonita, atraindo olhares e elogios de colegas. Thiago observa tudo com um ar de tensão, como se estivesse com medo de perder o emprego. Ele apenas faz seu trabalho quieto, tentando evitar o encontro com Carla. No fundo ele sabe que a condição está se tornando incontrolável e, uma hora ou outra, alguma merda bem feita deverá explodir sem remédio.
Quando Thiago sai para o almoço, Carla corre para alcançá-lo. Alcança. Almoçam juntos num self-service, só os dois. Ele não diz nada, ela fica falando sobre o dia anterior, sobre o que acha, sugestionando. Parece estar desesperada para resolver logo a questão. Não sei, não sei, sei não, repete Thiago ao longo do almoço. A paciência vai acabando aos poucos em forma de provocação, Carla quer resolver a vida como se fosse bastante fácil decidir a que ponto se chega, a que ponto Thiago abrange memórias do casamento.
- A que ponto você quer chegar? – ele pergunta, como se tivesse prenunciado o que ela não disse.
- Você sabe – ela graceja.
- Sei não, não sei.
 - Falta força em você, mesmo. Força pra dizer pra si mesmo que não quer mais aquilo.
- Que aquilo? Minha mulher?
- Eh... Essa vida toda que você leva.
- Ela não é aquilo. Pega leve aí, minha filha. Deve estar falando da sua vida e tenta descontar em mim... Poxa – ficou bravo.
- Ai, não, seu bobo... não se ofende! Longe de mim desmerecer sua namoradinha.
- Esposa.
- É, esposa.
- Quer que eu pense o quê? – pergunta, procurando manter a calma e a compostura, apesar de apresentar uma vermelhidão profunda no rosto.
- Ah, Thiago... Só acho que te falta coragem.
- Coragem? – e respira bem fundo – Coragem eu tenho, pode ficar tranquila.
- Posso apostar?
- Aposta o quanto quiser!
- Eu aposto um real que não.
Ele lança um olha desafiador mais ou menos alienado, ela gosta. Arrumou para a cabeça. Arrumaram.
Thiago chega em casa e tenta encontrar algum resquício deixado para trás. No quarto, pensa sozinho naquilo que pode ser a melhor decisão, até chora em conflito, com o orgulho um pouco ferido e a cabeça perdida. Um tempo depois sai do quarto recomposto. Propõe sair.
Leva a mulher ao restaurante, cinema, até compra para ela um vestido no shopping. Ela nem parece acreditar em tamanha bondade fora de época. Eles brincam, reparam em quem passa por eles, conversam como há tempos não faziam. Existe veracidade na alegria deles.
Há como reverter, mas restam dúvidas. Thiago se pergunta ao longo da noite se ama ou não ama, num incessante e fastidioso círculo sem nexo. Algo mais que cutuca a consciência: é aquela provocação de Carla que virou fardo.
Logo no fim da noite, já na cama, Thiago diz que convidou um casal para ir lá no sábado. Tudo bem para ela.
Por um capricho idiota ele se sente na obrigação de chocar todo mundo.
Dia seguinte manda um e-mail para Carla:
JANTAR EM MINHA CASA: AMANHÃ, 20H. VOCÊ E O MARIDÃO. APOSTO QUE VOCÊ TEM CORAGEM.
Respondeu o e-mail marcando presença. E passou o expediente sem trocar palavra com Thiago, só olhares.
À noite, Carla fala sobre o convite com o marido, que reclama e diz que não é muito de ir à casa dos outros que não conhece. Tenta mais tarde, pede meia hora depois, na hora seguinte, na quarta vez ele cede. Com isso já inventa na cabeça o que irá vestir para ser mais bonita do que ela.
Thiago pede à mulher para fazer strogonoff de frango, prato preferido de Carla. A generosidade espontânea dela – como se estivesse retribuindo o passeio, o vestido, e todo o resto do dia anterior – é tanta que preparará um de frango e outro de carne. Thiago trata de comprar três garrafas de vinho tinto e um engradado de cerveja, caso o maridão prefira. Prenuncia-se um jantar feliz.
A comida quase pronta, um trato rápido na sala. Todos aprumadinhos, bem perfumadinhos e relativamente sobrecarregados, receio de não terem tanto assunto para queimar a noite toda, mas há bebida suficiente para gerar desinibição uma hora ou outra.
Oito e quinze e chegam os convidados. Thiago recebe Carla e Sandro, que cumprimentam Flávia, que sai da cozinha meio desengonçada e tímida, tropeçando no tapete. Vieram munidos de uma caixa trufas e uma garrafa de vodca. Os olhares de Carla sob Flávia são de um desdém contido, assim julga Thiago, que faz sala para Sandro enquanto Flávia vai até a cozinha buscar uns aperitivos, Carla oferece ajuda e vai também em seguida, rebolando levemente, como faz no trabalho.
Thiago e Sandro são opostos, mas os santos batem. Cada um faz duas ou três perguntas babacas sobre trabalho e times de futebol, depois se calam e alternam os olhares ora para os respectivos sapatênis, ora para a televisão. Já está na hora de começar a beber, ambos sentem a necessidade de se ocupar com um copo.
Elas voltam com duas bandejas, uma com queijo parmesão com orégano e azeite e outra com uma cesta de torradas e um pote cheio até a boca de patê de azeitona feito por Flávia. Thiago oferece vinho, todos aceitam. E brindam e bebem e comem e se empanturram de bobagens cotidianas e olhares difusos enquanto evapora a água do arroz. Depois de uma taça entornada mais rápido que a dos demais presentes, Carla pede um copo d’água e Thiago vai buscar. Thiago, cínico por completo. Novamente, Carla se levanta e o segue até a cozinha. Ela sussurra, ele apenas fala:
- O que significa esse convite? – pergunta Carla.
- Só pra te mostrar. Mostrar você pra ela. Eu pra ele, normal.
- Normal? Que é que tem de normal isso?
- Ué, a gente não se conhece? Acho normal te convidar pra fazer alguma coisa fora do trabalho.
- Com meu marido e sua esposa?
- Se fosse tão duro assim pra você, era só ter recusado o convite.
- Ah... mas fiquei curiosa.
- Com o quê?
- Queria ver como era aqui, vocês dois juntos.
- Pra quê? – ele ri, como se estivesse debochando.
- Curiosidade mesmo... sei lá. E queria ver você – ela sorri com aquele típico rosto reminiscente que sempre faz quando quer tirar algo. Mas ele apenas lhe dá o copo.
- Oh, a água.
- Acho que você não bate bem – diz decepcionada, sem retribuições carinhosas.
Ele dá de ombros.
Thiago mantém a postura ilesa com sucesso, aí desliga a panela do arroz e depois arruma a mesa. Flávia desliga a televisão e põe um som baixinho, Tim Maia Racional, o Volume Dois, Carla não seria capaz de escolher isso, pensou Thiago. As travessas sobre a mesa, todos a postos. Garfadas depois e todo mundo elogia. Carla não seria capaz de cozinhar assim, pensou Thiago mais uma vez.
Cada um repete o prato e acabam rapidamente com a comida. Agora se soltam mais, falam de Tim Maia e Cultura Racional e comida e vontade de viajar e essas coisas que ligam todo mundo com qualquer um perdido num jantar ou coisas do tipo. Tudo vai bem com as trufas na mesa e o vinho na cabeça. A simpatia de Flávia, o jeito engraçado de Thiago à vontade em sua própria casa. Sandro parece realmente estar gostando de ter saído de casa. O acolhimento daquele casal é quase tocante, julga ele no exagero da bebedeira, enquanto escuta o anfitrião falar sobre sua viagem ao Chile no início do ano. Por outro lado, Carla, numa infeliz paranoia, acredita estar ficando para trás mais e mais, tem a impressão de que não acompanha Flávia em todas as suas qualidades e conforto; permanece contida, mas continua com um sorriso esticado escondendo tudo, pelo menos ela se acha bem mais bonita. No fundo só é quase perua, e ela sabe disso.
Já tudo mais leve e brando após enxugarem as três garrafas de vinho. Todos levemente bêbados. E é esse o intuito de Thiago, deixar todo mundo bastante vulnerável. Ele apela para as cervejas e ainda traz uma garrafa de cachaça e a outra de vodca que trouxeram. Depois oferece caipirinhas, diz que é uma de suas especialidades. Ninguém toca nas cervejas, caipirinha de vodca para os quatro.
Tim Maia Racional Volume Dois pela terceira vez. Aumentam o som. Agora estão bêbados mesmo e quase toda a formalidade se esvai. Carla até brinca com Flávia, até esquece da posição defensiva que vinha cultivando sentada à mesa. Já Thiago prossegue a noite se precavendo à sua maneira, fica no sofá comendo o resto do queijo da bandeja observando os três bebendo mais e se acabando de rir por nada, dançando “O Caminho do Bem” e cantando tortuosamente, sem saberem a letra de música nenhuma. Até Sandro decide falar mais, e admite:
- Olha, eu assumo que quase decidi não vir... ia estragar tudo – e ri emitindo um timbre inesperado e agudo.
- Ia mesmo, ia mesmo... – repetem os outros três, quase em coro, como que para abafar aquela risada feia.
- A gente quase não sai assim, pra casa dos outros... né, amor? – e coloca a mão na cintura da mulher, que responde balançando a cabeça afirmativamente. – A gente também não é de beber muito, né? Não queria incomodar...
- Imagina. Fica à vontade! – diz Flávia.
- Obrigado, obrigado! – Sandro levanta o copo vazio com se estivesse propondo um brinde. Depois põe um dedo de vodca pura no copo e ri daquele jeito mais uma vez.
- E eu que achei estranho o Thiago chamar vocês pra cá assim, do nada. Nunca tinha me falado de vocês.
Carla, com muita boa vontade e como se quisesse acabar com o resquício de tensão de uma vez por todas, pergunta mais ou menos na inocência, ou na burrice, da bebedeira:
- Verdade, Thiago, verdade... Você tá muito quieto aí! Conta pra gente o motivo desse jantar.
- Motivo? Não sei o motivo. É coisa que qualquer um faz de vez em quando, né?
Flávia cessa Tim Maia, procurando outro som. Curiosamente, apagam todos os ruídos da sala. Thiago pensa bem, mas rápido, e fala:
- Na verdade é porque a Carla me deve um real.
Os três choram de rir. Flávia, assustadoramente efusiva, se rende, caindo no chão; Sandro, encostado na parede, abre um sorriso de ponta a ponta segurando um copo de cerveja trêmulo; Carla dá gargalhadas com um ar de agonia e desespero, como se já estivesse se punindo internamente pela besteira e por aquilo que acabara de fazer aquele filho da puta de dizer. Thiago apenas observa o estado de todo mundo. Flávia retoma as forças e se levanta, percebe o marido com um ar quase soturno.
- Você tá falando sério? – ela pergunta.
- Claro.
- Mas o que tem de tão importante nisso?
- Acontece que apostamos – agora Carla fica alerta, perceptivelmente aflita. Ele retoma o fôlego e, finalmente transparecendo a embriaguez, prossegue. – Um dia desses, ela apostou comigo que eu não tinha coragem de dizer pra mim mesmo que não quero mais certas coisas.
- Certas coisas? – repete Flávia – Que porra de conversa esquisita – agora em tom bastante sério.
- Não, eu não disse isso, seu doido! – retruca Carla, meio ruborizada, tentando manter a leveza.
- Nessa semana... – Carla puxa seu braço, tentando impedi-lo de falar – não, agora eu quero dizer pra eles aqui o que aconteceu, me deixa! – se livra dela com um pouco de rispidez e prossegue com a voz alcoolizada, comendo sílabas – Eu...
- Eu o que, cacete!?!
- Acontece que nessa semana a gente se beijou.
(...)
- Ah, mas que beleza! É só isso que tem pra falar? – Flávia pergunta com uma ironia amedrontadora após um rígido e demoroso espaço de tempo.  
- É, é só isso que eu tinha pra dizer.
Ele levanta os braços num gesto que poderia significar muitas coisas. Espera por algum diálogo dos piores, porém não vê a reação de ninguém, apenas um silêncio morto e doloroso. Talvez estivesse fazendo uma tempestade desnecessária, pura questão de perspectiva. Mas se sente na obrigação de continuar falando sem nenhuma direção ou cuidado:
- Acontece que acho que Carla queria que eu assumisse pra mim mesmo que eu quero botar tudo a perder e acontece que estou botando tudo a perder e decidi que estou arrependido e também decidi foder com toda essa merda dessa porra toda aqui... Não quero saber de mais nada disso e tanto faz a situação agora! É isso aí, tudo o que eu precisava dizer.
 Dez enfadonhos segundos depois ele cobra de Carla:
- E cadê a minha moeda?
Carla tira uma moeda de dentro da bolsa e joga com violência no rosto de Thiago, dramatizando a cena e ferindo sua bochecha de modo que em outra circunstância teria sido estranhamente engraçado. Flávia chora, Carla xinga tudo o que é possível de tudo o que é possível e Sandro, bêbado como um gambá fenomenal, volta a rir, sem ninguém entender sua reação. Dava pena.
- Por isso que veio com todo aquele fogo pra casa um dia desses, foi? – Carla baixa a guarda – Ai ai ai, menina, viu!
Bate amigavelmente no ombro de Thiago, que por sua vez se esquiva com medo de levar uma porrada na cara. Sandro pega a garrafa de vodca da mesa, “Cara, valeu, pode ficar com ela! Eu fico com o resto do que eu trouxe pra cá, fica tranquilo, você me fez um favor”, e sai sozinho. Depois se ouve os pneus cantando e uma longa comida de marcha antes de dobrar a esquina.
Por um momento, todos os três olham para baixo.
Flávia enxuga as lágrimas e some a embriaguez:
- Como é que fica isso?... Como você me faz preparar comida pra quem você quer comer?
Sem se preocupar em como fará para chegar em casa sem o carro, Carla corre até a porta ainda aberta e sai cambaleando num ziguezague deselegante sem a necessidade dizer tchau.
O casal fica ali, sem um olhar para a cara do outro. Falando bobagens até de manhã, na boa vontade de tentar encontrar uma saída.
Thiago nem se lembra mais daquele beijo, faz questão de apagar para sempre o contentamento que chegou a provar no flerte com a outra. “Como era suja”, pensa com pesar naquela moeda toda vez que percebe como é difícil reconstruir a felicidade com Flávia, que ainda é sua esposa com a condição de que não cozinhará sabe lá até quando e nada de “O Caminho do Bem” naquele lar.  
Nunca mais pisou naquela repartição sentindo-se vulnerável. Carla tomou outro caminho, para bem longe, e não se sabe mais quem ela foi ali. 

domingo, 6 de outubro de 2013

"Sobre Transações"


Conjunto cinza de moletom e chinelos. No meio do caminho ele vasculha o bolso de trás e nada tateia: esqueceu de trazer dinheiro, sonolento por demais. Volta para casa com uma rapidez inoportuna e enche a mão de um punhado de trocados que achou no aparador. É o suficiente. O matiz do dia é amarelado e feliz. De acordo com seu entusiasmo, passar por outubro sugere ansiedade. E neste mês, especificamente neste ano, a aflição é o dobro da habitual. Sendo assim, até seus trejeitos expõem a irrequieta sensação para si e para todos. É quase folga, detalhe que o faz sentir-se ingenuamente único e quase completo bem no íntimo. Assobia uma melodia do Neil Young buscando refrescar seu espírito, pois sabe que é dia 31 – terça-feira com cara de sexta, véspera da véspera do feriado de finados –, mas ainda precisa trabalhar. Tenta também com algum esforço recapitular o que sonhou, mas antes vem à mente a imagem do seu calendariozinho que fica na cabeceira da cama e que nesta manhã continha a seguinte frase: FORTUNA E PROSPERIDADE EXISTEM PARA QUEM ABRANGE, mas todo aquele bolo de moedas balançando no bolso rente à bunda dava cinco reais e setenta centavos, exatamente. Ironia. O outro lado da rua lhe chama atenção, pois seu ônibus 152 passa freando e emitindo uma algazarra mista de pausa e tralha metálica. Agora sabe que tem algo em torno de cinquenta minutos para fazer tudo o que tem que fazer e pegar o próximo a tempo e menos cheio. Mentalizando o assento que poderá estar vazio o legítimo bom humor enfim dá as caras e assim, cheio de perspectiva, entra na padaria e sente aquele cheiro de pão sendo assado. Apetite que lhe cutuca a barriga, a traquinagem fisiológica. Pede trezentos gramas de pão de queijo e um leite tipo B; quer também um café instantâneo, mas na hora de passar no caixa o dinheiro não dá e reclama com um resmungo voltado para si por não ter trazido a carteira. Põe o café de volta na prateleira, paga à mocinha vaidosa que masca chiclete. Dá para sentir o hálito de melancia; tudo é muito doce, nela, que cantarola uma música sertaneja que não faz par com o Only Love Can Break Your Heart dele. A mocinha repara no moletom, franze o cenho, desaprova a roupa com alguma palavra secreta e guarda entre os dentes a opinião e no caixa o dinheiro, o montante que contém justamente aquela moeda de um real. Valores miúdos, contatos cegos. Com o nariz permeado de pão semi assado e melancia, ele vai embora ainda bem humorado sem ter rememorado o sonho. Prorroga este pequeno prazer guardando-o para o trajeto do trabalho. Rapidamente, a mocinha dá de troco o prodigioso tesouro para um senhor que lhe pede um maço de cigarros light logo em seguida. Ele quer parar, mas não maquinou qualquer planejamento ou estratégia, portanto fumar seu primeiro cigarro do dia ainda não é doloroso. Naquele instante o que realmente o machuca é caminhar com aquele joelho incorreto alfinetando o apreço pelos ossos. Às 16h ele tem uma consulta com o ortopedista que analisará seu caso de osteoporose. Dependendo do quadro, ganhará quinze ou vinte dias de perna engessada: uma folga dentro da folga por já estar aposentado. Passa pela banca de jornal e observa as manchetes esportivas e nutre uma esperança nostálgica que consiste em seu alviverde revelar um novo Leivinha à nova geração. Mas sabe que o tempo é de marasmo, então volta ao joelho latejante e à sua mulher, que o espera pra tomar o café, que acabara de ser coado e adoçado. “Esqueci de pedir pra comprar um pote de margarina, tá acabando”, diz a esposa. Mas ele já colocou os pães na torradeira, “Pega o requeijão, não dá pra ficar saindo toda hora com esse negócio assim”, ele aponta para o joelho e ela bufa, mas consente segundos depois e arqueia as sobrancelhas. Parceira. Tomam o café silenciosamente enquanto a televisão da cozinha passa um acidente envolvendo um motociclista e um furgão amarelo que parece ser dos Correios. O cara da moto morreu. “Coitado”, ela diz, somente. Ele pragueja sobre o fato enquanto ela percebe o sol que faz: lavar a roupa. Por coincidência ou truque do inconsciente acostumado com a rotina, o caminhão da água de lavadeira grita gradualmente água lavadeira. Ele está para cruzar a esquina. A esposa traga com pressa o resto do café com leite. “Me arruma um dinheiro pra eu comprar umas coisas com o homem”. Cumprimenta o rapaz que está na caçamba rodeado de mangueiras e garrafas pet multicoloridas, depois pede um litro de amaciante com fragrância de jasmim e dois reais de sabão de coco, o que dá seis barras. O cheiro dos produtos, as cores químicas e o megafone imperativo trazem à tona uma indizível sensação remota e macia, para ela. Para ele, que ainda está na cozinha segurando a xícara com dois dedos envolvendo a alça e imaginando a imprudência do motociclista, foi o desapego de mais um acanhado trocado discretamente vivo. Um pequeno e calado grupo de donas de casa vai se amontoando no caminhão. “Me dá isso, me dá aquilo”. Tanto brigado, brigada, obrigado você. O ônibus 152 menos vazio ronqueja distante, o sertanejo de melancia se cala como se fosse nada. Aquele um real se dispersa e para em alguma mão feminina. Houve uma prolixa confabulação, um sutil contato. Ninguém notou.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

“Django Livre” (2012)


Ao assistir Django Livre, o novo filme de Quentin Tarantino, qualquer espectador mais analítico chega à conclusão de que finalmente seu modo de contar histórias atingiu uma maturidade essencial, ou melhor, mais fluência no sentido de apresentar um produto homogêneo em estética, enredo e entretenimento.

No entanto, para os entusiastas da obra do diretor, falar de qualidades como essas sempre pareceu muito óbvio, mas o fato é que desde Bastados Inglórios (2009), ou até um pouco antes, seu estilo tornou-se mais aceitável até para os mal acostumados com muita violência. Isso porque os temas que ele vem escolhendo são tão interessantes quanto a roupagem única que o fez um ídolo pop. Afinal, quem nunca imaginou ao menos uma vez algo similar à uma vingança judia contra o nazismo sendo concretizada ou um ex-escravo que mata donos de fazendas e afins?

Em Django Livre temos um escancarado exemplo de persuasão artística e constante repaginação. Por isso é tão difícil para aqueles que se interessam por cinema escapar da teia desenvolvida por Tarantino, que tem como característica conseguir ser apelativo em todas as direções possíveis e convencer com seu ponto de vista nada ortodoxo. No filme, desde o início, é muito fácil reconhecer a união do perfil de Sérgio Leone (diretor de clássicos como Três Homens em Conflito, de 1966) e o alternativo dos filmes de baixo custo. Para exemplificar esse incessante casamento de gêneros, já basta a trilha-sonora, repleta de surpresas e de originalidade casa o infalível spaghetti western de Ennio Morricone com 2Pac e até Richie Havens com a histórica versão de “Freedom” ao vivo no Woodstock.

Mesmo que charmoso no papel, esse minucioso trabalho de costurar retalhos só ganha corpo de fato graças à belíssima atuação do elenco. A começar por Christoph Waltz, que interpreta Dr. King Schultz, um astuto caçador de recompensas, muito mais “sensível” e tão carismático quanto o coronel Hans Landa, personagem interpretado pelo próprio Waltz em Bastardos Inglórios. Jamie Foxx é Django, o ex-escravo e parceiro de Schultz, que comprou a liberdade do negro com a condição de que o ajudasse a encontrar três irmãos assassinos.

Após concluída a missão, Schultz libera Django, mas mesmo assim decidem serem parceiros no ramo. Ao mesmo tempo em que prossegue como caçador de recompensas, Django tem como objetivo principal encontrar e resgatar sua esposa Broomhilda (Kerry Washington), uma escrava que ele não vê há anos. A busca de Django e Schultz leva-os a Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), o dono de uma fazenda chamada Candyland, famosa pela brutal hostilidade e o treino intensivo de escravos locais usados para a luta. Ao entrarem na propriedade com identidades falsas, Django e Schultz chamam a atenção de Stephen (Samuel L. Jackson), um velho escravo de confiança de Candie, e é aí que a trama fica mais interessante.

DiCaprio está perfeito como o excêntrico e cruel proprietário de Candyland. Com tantas boas atuações no currículo, vale dizer que poucas vezes se viu o ator atingir uma intensidade como em Django. Fica fácil enxergar através de DiCaprio uma das especialidades mais fundamentais de Tarantino: dirigir um ator conduzindo sua personagem a uma qualidade de carisma extremo, pouco importando o caráter do mesmo. O impagável Stephen, de Samuel L. Jackson, que tem aversão aos próprios negros, também faz parte de um elemento básico da filmografia do diretor, sendo aquele sujeito mau-caráter que extrapola o contraditório a ponto de parecer cômico. Quanto a Broomhilda de Kerry Washington, uma bela escrava que fala alemão, apesar de ser o motivo central da trama, recebe menos destaque que os demais, talvez por manter em meio ao absurdo (e não tão improvável assim) mundo western de Tarantino um sinal de sobriedade em comparação às demais personagens.

Quanto à violência, pode-se dizer que este filme é, se não o mais bruto dentre todos os de sua obra, pelo menos aquele que mostra uma carga mais densa de requintes de crueldade. O mesmo se dá com a sensação de vingança, similar ao sentimento experimentado em Bastardos Inglórios e também nos Kill Bill. Mas a diferença entre os demais é que Django Livre reafirma ainda com mais apelo uma inevitável força artística.

Gostar ou não gostar de filmes como Django Livre é uma questão sensível e inútil, mas é certo que o “modo Tarantino” de fazer filmes vem provando ao longo dos anos que funciona como entretenimento e traz consigo uma importância como obra de arte muito além do superficial sentimento de gratuidade.
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