Às
quatro e meia da tarde houve um imenso e surpreendente desejo tolo quando do
outro lado da rua uma vitrine empesteada de doces a preço único palpitou em meu
caminho. Todas aquelas porcarias e não há como despercebê-las; receitas de morango,
doce de leite, cereja, geleia, chocolate. Cinco reais por um pedaço do dia que
vale a pena não nos aparenta ser tão caro assim. Então entro, sento e peço à
moça que me atende uma torta holandesa e uma garrafa de água gelada sem gás.
Talvez em um horário mais ameno a mesma moça agacharia debaixo do balcão para a
câmera não acusá-la enquanto deliciosamente come um quindim numa bocada só. Por
fim vejo o meu doce na mão da moça. Ele está mal representado numa espécie rasa
de copo quadrado de plástico semelhante a um aquário de peixe beta, o qual me
dá a impressão de que não conseguirei meter a colher nos cantos do fundo sem
parecer um processo cirúrgico ou um mão de vaca que quer sugar cada centavo. Eu
agradeço. Segundos depois a garçonete volta atrás e pergunta se eu aceito comer
um salgado antes, peço uma empada de palmito. Só havia de frango. Aceitei assim
mesmo. A empada chega com uma cor saudável. Mordo com vontade sem verificar a
temperatura e concluo que está bastante quente. Engulo freneticamente o pedaço
ao mesmo tempo em que expulso o vapor com uma fisionomia de angústia e
afobação. O sabor é anulado pelo ardor e tudo o que posso sentir antes do bolo
alimentar descer para o meu esôfago é um ingrediente desconhecido e
intransigente, duro: um real fervido que no calor do momento me pareceu mais
uma lisa e irregular azeitona preta. Bebo com rapidez a água para tentar anular
a etapa anterior, mas minha língua já estava bastante queimada. Termino de
comer o resto com pouca pressa, sem grandes pretensões de me sentir satisfeito
por coisa alguma. Já estava feito. Paguei meu consumo e fui embora a tempo de
descer aquela íngreme rua e encontrar no caminho três tipos diferentes de se
pedir esmola; como na vitrine cheia de doces, escolhi a melhor alternativa e
dei um trocado para o infeliz que lá estava sentado na guia com uma perna
carcomida de perebas e uma bandana vermelha cobrindo a parte mais crítica, a
qual ele ameaçou mostrar mesmo quando desviei o olhar. Do lado oposto cachorros
faziam coisas de cachorro nas calçadas de comércios de coreanos e chineses e
brasileiros, lá e cá: faziam amor complacente e engoliam sem vaidade restos de
comidas sem pagar. Comida e custo, comida
e custo... arroto constante que me fazia lembrar. E eu pensava em quão
proveitoso seria existir daquele modo despretensioso, tendo apenas que dar em
troca uma participação usual numa rua fedida precificando a minha própria
sorte. Mas é tão besta raciocinar assim que nada daquilo fez muito sentido
minutos depois; três reais a menos e eu já estava no metrô... Hora propícia
para ficar calado ressaltando outros departamentos com o estômago reclamando e
sacudindo. Ele queria me alertar do perigo iminente, mas me pareceu apenas uma
forte crise de flatulência chegando enquanto meus sentimentos continuavam
apontando para outro sentimento mais intrínseco que cansaço ou outra coisa
aleatória. Nada que me dizia respeito, eu só queria ir pra casa. Minha
indisposição ao lado de um senhor pardo com uma bíblia debaixo do sovaco e um
rosto íntegro que quase imitei sem a intenção. Meu suor seco com dez ou mais
mulheres de meia idade passivas ou o contrário e adolescentes uniformizados com
blusões azuis e suas montanhosas mochilas nas costas. Suor seco deles, gosto da
empada na boca indo e vindo e os vagões pareciam soltos. Coletivo munido de
celulares em mãos de todos os tamanhos e cores e cheiros de coisas e lugares
que me faziam ter a impressão de que eu estava mais limpo que os outros.
Parecia que eu ia adoecer. Cheguei com um sorriso mental em frente ao portão de
casa. Banheiro, cozinha, televisão e o alívio preciso em todas as partes do
corpo; sem sapatos, meias, calça ou bagunça na sala. Um silêncio abafado me pôs
relaxado no sofá para curtir aquele vazio ao mesmo tempo em que massageava
minha própria testa. Recorri ao resumo do dia, recapitulei hora a hora com
bastante facilidade enquanto dentro de mim algo desconhecido gradativamente me
provocou calafrios como quando se declara para alguém ou quando está a ponto de
ver uma catástrofe premeditada. O abdômen falando. Fui ao banheiro
imediatamente para acabar com a dúvida. Em meio ao habitual, um timbre agudo e
sólido estala na cerâmica da privada ao mesmo tempo em que paira uma súbita
consolação intestinal. Verifico meio sem jeito de olhar e lá está o ingrediente. Nos olhos uma expressão de repúdio
embaralhada pelo acúmulo desfigurado de refeições e o lucro imaculado. Imersos
na água, bosta e moeda, cada coisa com seu devido nome e propósito. Um real de
sempre, comoção de graça. Tirei-o dali, limpei e guardei na minha carteira com
a intenção de dar a alguém sem mencionar sua trajetória. E ainda não escolhi
essa pessoa.
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
"Sobre Alimentar os Sentidos"
Abre
a janela sem o propósito de achar o que nunca achara em outra paisagem, e está
tão ensolarado que pouco importa; a grama se estende até a descida do morro.
Só, sente o aroma de madeira e terra macia que tanto o faz feliz quando tudo se
mistura perfeitamente no ar. Respira fundo e agradece por pensamento, pela
afinidade bucólica, e volta a si ao olhar para os pés descalços que tocam o
chão rústico da cabana: precisa cortar as unhas, mesmo. Vai à cozinha preparar
um café e ligeiramente se comove pelo desalento que não existe naquele dia. Sente-se emocionado
por nada em particular, talvez pela sorte fácil que desliza aos poucos e
atravessa o coador indo direto ao bule, fumegando. Mira um porta-retrato
solitário e sorri, pois já se foi o tempo de viver o tema ali representado:
três irmãos fantasiados de mágicos. Não se culpa por ser aquele mesmo aluno
indisciplinado, fez seu caminho longe, longe da professorinha. Seus olhos não
escondem nada. Há quanto tempo não via seus amigos? Havia tempo? Existiam? Sabe se lá o que se passa com
Frederico, com Rosa, com Alberto ou outro antigo episódio marcado por esses
parceiros. Tem alguma pressa, portanto rasga o pão com as mãos e esquece-se da
faca que usa para aguçar a espera de um proveito qualquer. Assim age Álamo em
22 de outubro, pois bem sabe que as chuvas começarão em poucos dias e precisará
de mais temas e inspiração para acompanhá-las no dueto que tocou com maestria
em sua cabeça neste veraneio. Fez sua cabeça com bastante calma até encontrá-la
sã. Calça as sandálias para ter com a quaresmeira estufada de lindas folhas e
flores uma prosa visual e plena de prosperidade; desce o morro com cinquenta
passos tenros e enxerga algo que nos diz respeito, volta correndo em saltos
dramáticos contar ao diário o que viu. Muda a caligrafia propositalmente, como
se mudasse de voz ou de cor da pele, escreve um bilhete breve, rasga a folha do
caderninho e lança para a varanda; o vento a leva morro abaixo e segundos
depois o céu distante degrada de azul para verde como num daltonismo
controlado. Seus pulsos enrijecem por uma boa gama de motivos emotivos e
regozijos desconhecidos. Prefere não entender quando o vento sopra até sua
escrivaninha improvisada um novo bilhete com os dizeres: “Estou esperando do
outro lado”. Sente o semblante faceiro caindo pouco a pouco, dando lugar às
jovens rugas que vão surgindo uma a uma, andando pelo rosto, pelos braços e
fazendo cócegas estranhas quando cai um espelho ao lado da cama; não pode se
assistir indo embora, encolhendo-se... sequer faz questão de notar quando se
dissolve, como se isso fosse realmente possível a todo momento. Suporta e vive,
de novo, pela segunda vez. Tudo ao mesmo tempo. E assim, sem tomar consciência,
abanca mais uma chance de ser aquele que tanto almejava e xhxhxhxhxhhxhxssssssssssssssssssttts! Eis que chora por nascer de
novo por meio de outra mãe. “Menino!”, diz uma voz feminina. Ele nada percebe,
não mais. É quase outro, aquele que está no colo de uma desconhecida; a
desconhecida o faz se sentir risonho, mas ele não sabe ao certo o que isso
significa, não houve tempo para isso. Álamo perde o nome e todo o resto de
antes para um corpo recém-nascido.
Créditos,
a luz acende.
Greta
sai do cinema confusa e com uma leve enxaqueca, mas feliz por ter pago apenas
uma moedinha por aquilo. Por outro lado, já faz um bom tempo que ela pensa em
Álamo esporadicamente e com a secreta vontade de tomar seu lugar, como se isso fosse
possível. E é assim que todo bom filme deve ser.
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
"Sobre o Mau Uso das Pessoas"
O
gosto da solidão não é oportuno. Talvez o tédio estivesse comendo tudo o que
foi erguido com tanto cuidado nos últimos tempos. Tem a impressão de que vinha
se arrastando para essa situação, peculiar efeito que o envolve.
Incômodo
como um estomago cheio de comida, Cristian assim se sente, mas não alcança essa
comparação. A preguiça incrustada no corpo é bastante e a imaginação dorme em
algum lugar.
Sala
sob 60 watts de luz incandescente, lâmpada insuficiente bastante perversa
quando não se está disposto a curti-la. Por fim o amarelo domina a situação
decisivamente como se fosse alguma revelação mais séria além de um vazio bobo.
Não há alvos concretos.
Não
quer ler, não quer fazer palavras cruzadas, não quer escutar música, não quer
dormir. Sem telefone ou internet. A fuga pode estar na televisão, mas ela não
fornece nada mais curioso do que os 60 watts por cima da cabeça. Os mantimentos
da geladeira são margarina, leite, cenoura, cebola e café em pó. Café com leite
o faria mais abarrotado, então também descarta as possibilidades da cozinha.
Talvez
haja a vontade de fazer tanta coisa que não saiba por onde começar, questão de
perspectiva. Em longo prazo, pode ir ao interior ver seu pai, pode ir à praia,
cuidar de casa, comprar suas bobagens... Tudo o que gosta e o que precisa. Mas
neste episódio em específico há nele algo a mais, uma tonalidade de irracionalidade,
uma sensação biliosa que quer arrastá-lo para a tensão do desconhecido.
Cheira à burocracia, baldeação e ABC Paulista.
25 anos, Cristian Pereira Cruz: 21h15 de sexta-feira; o coração bate forte e ele
deve tomar uma atitude.
A
arritmia que quase assusta o tira forçosamente do sofá. Vai ao banheiro tomar
banho. Nu, observa-se no espelho com zelo e por algum motivo idealiza alguém desconhecido
ao lado dele no espaço vazio do reflexo. Sente-se bonito. Entra no chuveiro e
prossegue com a ideia de preencher o buraco vago que viu. Lava o corpo como se
alguém fosse cheirá-lo ou tocá-lo, como se almejasse uma ocasião especial, como
se estivesse vivo para todo o resto fora de casa. Sovacos, pescoço e barriga devidamente
ensaboados; xampu nos cabelos; alguém a mais no banho, alguém sem rosto e
Cristian bonito para si. Encharca o tapetinho, molha todo o banheiro, escova os
dentes, faz a barba com esmero, deixa um bigode para mudar, passa desodorante,
põe a cueca, veste uma bela camisa e se perfuma estrategicamente; atrás das
orelhas, pomo de adão e pulsos.
Separa
o pente, o gel e eis um estalo mental que determina o que irá fazer. Pega uma
moeda do bolso da calça caída no chão: coroa, eu vou; cara, fico. Coroa. Ele
irá ao forró.
Não
é seu tipo de ambiente, casa de forró. Aliás, nunca pensou em ir a uma, e se
algum conhecido o encontrar no caminho, definitivamente sentirá um profundo
constrangimento. O que pensarão dele seus amigos engolidos pelas suas convenientes
arrogâncias de quem acha que sabe do melhor?
Pega
um ônibus que vai em direção ao centro. Desce um pouco antes.
Há
uma pequena fila na entrada. Um pequeno aglomerado de carrinhos de lanches e
vendedores de amendoim o chama atenção, mas quer entrar logo para acabar com a
curiosidade. Uma faixa verde limão pendurada entre dois postes anuncia em
letras rosa choque para Deus dará:
16/11
- SEXTA DO ESPETINHO: KAFTA E LINGUIÇA À VONTADE
BANDA
KERO MAIS
HOMEM
R$ 10
MULHER
R$ 5 (GRÁTIS ATÉ MEIA-NOITE)
Está
nervoso, não sabe ao certo o que está fazendo ali. Sente-se como um imbecil e
as pessoas que ali estão parecem notar o que ele é. Para ele isso está bem
claro. Umas mulheres de trinta e poucos olham para ele, talvez contemplando sua
vulnerabilidade com algum sentimento incógnito. Quem sabe. O nervosismo aumenta,
no fundo está apavorado. Paga os dez reais a uma senhora numa cabine construída
de Eucatex. Ganha uma comanda de consumo.
Como
na quinta-série, como quando alguém acaba de entrar numa sala de aula cheia de
pessoas ameaçadoramente novas, ele passa pelo segurança, sobe uma escada e se
depara com um salão tocando um som que lhe é familiar, mas não consegue se
lembrar do nome da música. É um forró alucinado que está sendo distorcido pelos
alto falantes, e é evidente que um teclado emula o acordeom e a bateria, parece
videokê, mas ninguém dá a mínima para esse detalhe. Faz força para entrar no
clima do ritmo, mas o corpo continua rijo. A banda ainda não subiu ao palco.
Todo mundo está com um espetinho na mão. É um povo agitado que realmente
transmite alegria. Exaustor, pelo amor de
Deus. A fumaça da churrasqueira instalada em um dos cantos do salão invade
a pista como se fosse efeito de uma maquina de gelo seco; há tanta gente
querendo mais espetinho que ele nem tenta pegar o seu. Há um mosaico asqueroso
com vários pedaços de carne e varetinhas distribuídos no chão. Cristian se vê
exposto, não sabe para onde correr, procura se ocupar com alguma coisa para não
continuar parecendo um trouxa exclusivo. Pede uma cerveja para um barman de
olhar intrépido e cara de boliviano que parece estar à espera de alguma bobagem
pronta para eclodir. Cristian vasculha a direita e a esquerda tentando achar o
motivo daquela feição, depois recua e observa se há alguma mulher que lhe
agrada observar. Todo mundo pede ou catuaba com energético ou vodca com energético
ou uísque com energético. O que há de tão especial nisso?
Uma
estranha mistura de sentimentos abusa de Cristian, parece que a satisfação não
chega da mesma forma como chega aos demais; experimenta uma forte palpitação no
peito que vem a ele como uma monstruosa amostra de timidez. Tudo escurece e
apenas um canhão de luz negra enfeita o ambiente; quem está de branco ou algo
parecido se destaca gritantemente. O povo aprova a quase penumbra com um grito
uníssono e dançam, bebem ainda mais e comem menos espetinhos. Uma dúzia de
calças brancas feminicoladas o excita, aqueles quadris sugestivamente se
movendo para lá e para cá, sinuosamente: dá para ver as calcinhas. Ele experimenta
uma ereção. Os homens estão praticamente de uniforme, todos vestidos iguais: polo
com números aleatórios e brasões, e jeans cheios de remendos e zíperes
estratégicos.
Mais
de meia hora se passa e ele se pergunta por que não consegue ficar tranquilo. Até
tenta alguns movimentos, mas prefere sentar em um banco perto dos banheiros bebendo
sua cerveja.
Sem
se dar conta, Cristian boceja e perde o interesse pelas bundas de Lycra. Na
busca por uma posição confortável, por fim enterra as duas mãos nas laterais da
cabeça e apoia os cotovelos no joelho.
Alguém
sai do banheiro feminino. Ela pergunta quase gritando:
-
Tá bem?
-
Por quê?
-
Ah, sei lá.
-
Pareço tão derrotado assim? – retruca mais alto ainda, meio assustado, mas
contente por alguém ter feito aquela pergunta.
-
Não sei, não consigo ver o seu rosto direto nesse escuro.
-
Também não vejo o seu.
- É
que você tá sentado aí todo torto. Bebeu demais, foi?
-
Ah, só não quero dançar.
-
É, não tem cara de que gosta de forró.
-
Mas você disse que não tá conseguindo me enxergar.
-
Mas se gostasse faria um esforço pra dançar, pelo menos.
-
Verdade.
-
Estava indo fumar, mas não queria sair sozinha.
Ele
foi, mesmo não entendendo aquele medo de sair sozinha. Por fim a viu. Razoável.
Morena loira quase magrela bonitinha.
Parecia ser uns cinco anos mais velha que ele. Dava para descobrir um ou outro
encanto ali, pensou. O salto plataforma a fazia andar torto e vulgar. Carros e
chiado e cafonice e pele e postes e risadas e pipoca e sotaque não eram mais
tão audaciosos. Por um breve momento Cristian se sentiu dono de uma sorte tão
cega que até esqueceu de que ela era mais ou menos, de que estava exposto na
rua fazendo parte de uma cena que arriscava gratuitamente a integridade de sua
reputação. À esquerda de Cristian a moça fumava calada, olhava uma janela acesa
no alto do prédio em frente; ela parecia não se importar com o silêncio dele.
Cristian
tentava puxar do repertório algum assunto que coubesse naquele tempo, mas no
lugar disso saiu uma ordem:
-
Vamos embora.
-
Tem carro?
-
Ônibus.
-
Hum.
Subiram,
pagaram e saíram quando ao mesmo tempo um furgão cor violeta estacionou, era a
banda. Andaram por uns quinhentos, seiscentos metros até encontrarem um boteco.
Ele
se senta e ela diz que vai lavar as mãos. Cristian pede uma caipirinha, e ela
demora tanto que ele bebe tudo e depois chupa os gelos pensando em uma estratégia.
Há um trio de velhos jogando buraco três mesas adiante. Enfim ela volta com um
sorrisinho que seria delicioso se não estivesse tão vermelha; retocou a maquiagem
e exagerou no blush, parece que foi esbofeteada no banheiro. Esperava um olhar
de aprovação dele e ganhou. Os velhos e
o menino que prepara um x-egg na chapa olham para a bunda dela; lordose inumana
que excita somente os iludidos. O odor-linguiça defumado dos dois e o perfume
almiscarado de Maria – esse é o nome – invadiram o nariz de Cristian e por
algum misterioso motivo aquela combinação mais a cor alaranjada das paredes e a
expectativa de uma continuação aleatória o fizeram sentir-se mais disposto.
Profissão,
idade etc., conversa chocha; mais caipirinha, mais conversa, mais caipirinha.
Nada prosseguia por muito tempo, Maria parecia meio desinteressada por qualquer
coisa vinda dele, exceto a caipirinha. A sorte cega vai cessando. Chega a desinibição
e ele diz:
- O
que você tava fazendo lá?
-
Uma menina do meu trabalho tá fazendo aniversário hoje – era mentira –, só
passei pra dar um oi. Mas eu é que te pergunto.
-
Que pergunta o quê?
-
Foi lá por quê?
-
Curiosidade, só.
-
Assim, do nada?
Ele
tira aquela moeda de um real do bolso e põe na mesa, essa é a sua resposta. Ela
olha para a cara dele com uma expressão confusa que lhe significou o que se passa com esse coitado.
-
E?
-
Tirei cara ou coroa. Deu coroa, daí eu fui.
Dito
isso, feito isso, Maria sentiu como se tivesse escutado uma confissão difícil,
como se uma rodela de franqueza tivesse sido depositada naquela mesa grudenta.
Sentiu mas não entendeu as coisas dessa forma, não conseguia classificar nada
com exatidão, estava bêbada e determinada a prosseguir embriagada. No esforço
conseguiu julgar que aquilo que transcorria era a melhor coisa que poderia se
esperar daquela circunstância. Com isso deveria ter surgido todo aquele sentimentalismo
que se experimenta nas pequenas coisas ignoradas, mas na hora h continuar não
sabendo com quem estava lidando pareceu ser o detalhe mais certo a se apegar...
Estimulante, talvez. O que saiu da boca dela não condisse com a sensibilidade
que Cristian quis compartilhar.
-
Mas por que deixa a sorte decidir as coisas por você?
-
Quis tentar alguma coisa diferente, nunca fiz isso.
-
Mesmo sabendo que não ia gostar.
-
Não disse que não gostei.
-
Eu não faria isso.
- O
tédio faz a gente se surpreender. E ainda não sei se gostei ou não.
-
Ah não?
-
Não.
-
Quando vai descobrir?
-
Quando me disser por que me chamou.
Ovo
estalando na chapa, televisão e pigarreadas. A princípio Maria não respondeu.
Ficou esboçando qualquer coisa que desse a chance de ampliar as perspectivas,
dele e dela. Cristian era difícil e cansava sem querer.
Estava
tarde, sem ônibus e Maria mirava aquela moeda com um olhar esbugalhado que nada
dizia. Talvez tanta bebida, talvez... ovo estalando na chapa, televisão e
pigarreadas... Saltou por cima do pudor indo para o finalmente. Ela não se
importava, desmanchou o marasmo com:
-
Tô a fim de foder.
As
pálpebras de Cristian ficaram trêmulas e seu lábio empalideceu de susto. Repetiu
interrogativamente aquela palavra como quem não acreditou no que ouviu e fez um
gesto afirmativo com a cabeça levantando com pressa.
- O
tédio faz a gente se surpreender, né? – disse Maria com um olhar embriagado de
deboche e imitando a voz de Cristian.
Ele,
com o orgulho levemente ferido, engoliu seco e pagou as bebidas.
Sexo
lacônico no hotel da esquina. Dez a hora. Roupas, mofo, bojo, abajur, mãos,
línguas, pelos descoloridos, reação, chupões, gemidos sequenciais e onomatopeias
cutâneas. Vinte minutos e gozo obtuso. Não conversaram depois, nem durante.
Sorriem suados, ofegam, depois passa.
“O
que se ganha ao foder?”.
Seis
e pouco. Maria dorme com a boca no travesseiro. Ele pensa em quem já se deitou ali
e se levanta enojado. Cristian observa consternado o espaço vago no espelho do
quarto, depois lava o rosto e vai embora com aquela dúvida sobre foder. Como se estivesse pagando uma
puta e torcendo para que ela assim notasse, deixou a moeda na cabeceira junto
com a chave do quarto. Pagou a mais na recepção para que ela pudesse dormir um
pouco mais.
São
Bernardo do Campo: domingo de feira e Cristian Pereira Cruz de Sábado. E Maria
prefere acreditar que está apenas curtindo a vida.
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
"Sobre o Baixo Valor Perdido no Chão"
A
céu aberto na Avenida Paulista.
O
tom seco de saltos e sapatos arrastando poeira para lá e para cá sem culpas em
relação a isso. São objetos, somente. Percussão estrondosa ao pé do ouvido do
chão que esconde o metrô perfurando a pressa logo abaixo. Nada disso pode
significar qualquer coisa para quem caminha ou é capaz de caminhar; nada disso
pode ser considerado interessante para quem respira o ar da tarde próxima ao semáforo
próximo ao ponto de táxi próximo da noite próxima das 18 horas. Buzinas de
motociclistas que costura carros, seus oponentes. Um inferno para trafegar e estacionar,
e não importa a hora, todo mundo sabe disso, não é preciso estar lá. Tudo
irrelevante para quando não se dorme e o sono é supérfluo... para ela, a moeda: para ela é assim.
Calor
mentiroso acobertado por uma nuvem sem cor, apenas; um invólucro enorme e
magoado por uma série de pretextos poluentes e climáticos do coração econômico
do país. Será que isso um dia muda? A moeda, pra ela é assim: arranhões sem
dor, arrastões inocentes e passos alheios espremendo tudo debaixo dos pés. O
metal toca o asfalto, toca a sujeira, sem perder seu real valor. Como quando
alguém mata formigas ao caminhar, alguém as pisoteia sem tomar conhecimento do
que acabou de fazer. Para a moeda é assim, quase sempre.
Fácil
e acessível como um pequeno furto caído próximo à guia que separa a
tranquilidade do atropelamento na via expressa sem ninguém notar a tensão entre
as duas possibilidades. A céu aberto na Avenida Paulista e nada faz sentido a
não ser quando por ali passa Aquele
ou Aquela, impregnados de
características típicas. As roupas bacanas do sujeito bacaninha que aparenta
ter uma vida completa. Os óculos gigantes da garota quase feia com um jeito
nojento e empolado de andar mascarada e segura de si. Os cães de raça, os
vira-latas. Pessoas simples, colegas do cotidiano... bonitos, feios e
simpaticamente ordinários; aí sim está resguardado o melhor – e para eles o
melhor está resguardado em algum lugar não tão longe de lá.
Procura-se
a meada do nexo enquanto simultaneamente, sem assumir, pessoas dedicadas e
raras procuram sorrisos naturais desvanecendo entre coisas opostas que se vê
por aí. Não se sabe como se dá abertura a isso, mas é o que acontece nesta
tarde enquanto para alguma coisa qualquer é necessário permanentemente valer
cem centavos de real: um olho monetário no chão podendo fazer a alegria de
alguém. Pedestres, caminhos sinuosos e retilíneos de um mar de gente que
carrega o corpo para se desgastar por obrigação nos quatro cantos da cidade.
Não se ouve nomes, não se ouve reclamações. Ninguém é dono do que diz ter. Ao
menos na calçada, um infalível valor pendente espera ser gasto como sempre.
São
Paulo da garoa faz jus ao apelido garoando sem grande vaidade, acostumada.
Chuva fina sobre várias porcarias e tesouros no chão. Só resta maldizer o
molhado que vem de cima desfazendo penteados e determinando o fim da tarde.
A
céu aberto na Avenida Paulista e alguém que caminha como quase todo o fluxo:
alguém com um nome e munido de guarda-chuva e indiferença sorri por dentro ao
contemplar a própria sorte e extrai do chão a solução do conforto e completa a
passagem do ônibus que agora deve pegar para fugir da chuva que começa a arquitetar
uma trama mais séria.
Amanhã
a catástrofe virá a ser comentário, as calamitosas negligências que dão as
caras ano a ano, como se fosse Natal, Páscoa ou Carnaval: a enchente; os
desmoronamentos, longe da Avenida Paulista.
E
visto que é trivial correr aleatoriamente para qualquer canto a favor da
própria vida, visto que vez ou outra não há motivos compassivos que nos
permitam olhar para o chão ou para o céu com a intenção principal de observar
por onde se passa dia a dia, é possível garantir que há gente em pé com olhar
horizontal que anula a tradicional paisagem e suas probabilidades abertas...
A
céu aberto na Avenida Paulista. Seja lá o que for, vale ser inserido nesse
amontoado de definições. E nenhum drama maior domina quaisquer ações civis
enquanto tudo for invisível.
"Sobre Abalos"
Ela
pede com gestos e com o rosto reminiscente para ele perder a cabeça de uma vez
sem pensar, mas aí ele se trai e põe as mãos nela obedecendo aos sinais: agora
ele é um cafajeste. Quadril, cintura. A bunda dela, por meio do tato, é um delicioso
amontoado irremediavelmente macio de vontades que lhe cutucaram o pensamento
por um par de meses ou mais. O beijo dele é aflito e aquela barba irrita a pele
do jeito que ela imaginava e queria que fosse.
Morre
a curiosidade como morre acima deles a luz do poste que pisca uma sequência
perturbadora como pisca a informação do outdoor que arranha parte da cena como
arranha o chão os tilintantes cacos de vidro que ladeira abaixo deslizam inevitavelmente
como desliza o cheiro da dama-da-noite da esquina que ano a ano cresce como
cresce a mesma indiscrição que dá início a toda infidelidade. Aglutinação de enfeites
estranhos que tornaram aquele maldito momento excepcional para os dois, Carla e
Thiago. Morre tudo isso em torno de um beijo lento, sem promessas.
Marido
de Carla conta as despesas do mês na mesa da cozinha. Esposa de Thiago pinta as
unhas de violeta enquanto assiste novela.
Os
fatos prosseguem remoendo nas cabeças antes do conhecimento de todos. Thiago
volta para casa com o cheiro de Carla esparramado na roupa e no corpo. Carla
faz planos em segredo como fazia bem antes do beijo, o qual ainda é sentindo
naquelas duas bocas. Gosto delicado de saliva com ruptura.
Thiago
põe os pés dentro de casa saboreando um natural sentimento de culpa. Com medo
de que sua mulher descubra, ele apenas diz de longe um olá meu amor e corre para o banheiro dizendo que está apertado.
Toma banho e lava tudo cuidadosamente para não restar vestígios. Joga a roupa
suja no fundo do cesto para se misturar com o suor das outras.
Quando
volta à sala, ela põe a mesa e eles jantam uma macarronada em meio a perguntas
do cotidiano. Tudo é cenográfico, morno e protegido. Por dentro dos dois dói
lentamente o tédio que não sabem como liquidar. Ela nem quer mais aquilo, e é
difícil por um ponto final quando não se tem a coragem necessária. Mais fácil
esperar pela catástrofe. Assistem ao jornal, um seriado e depois vão dormir sem
ter assunto para depois.
Carla
chega e vê seu marido sentado calculando o orçamento. O beijo ainda repercute
no pensamento e ela precisa continuar aquilo seja lá como for. Puxa o marido,
beija o pescoço dele, põe a língua em sua boca e acendem. Com efeito, transam
rapidamente sobre a mesa cheia de recibos e cartas abertas.
O
resto da noite prossegue quase usual, com uma leve alteração quando,
aproveitando uma disposição sem propósito, eles repetem o sexo. Em ambas as vezes
ela imagina Thiago, enquanto o marido faz tudo por fazer, já bastante enojado
do sexo conjugal. Deve ter os seus motivos.
Carla
faz o dia parecer mais agradável naquela repartição. Está mais bonita, atraindo
olhares e elogios de colegas. Thiago observa tudo com um ar de tensão, como se
estivesse com medo de perder o emprego. Ele apenas faz seu trabalho quieto,
tentando evitar o encontro com Carla. No fundo ele sabe que a condição está se
tornando incontrolável e, uma hora ou outra, alguma merda bem feita deverá
explodir sem remédio.
Quando
Thiago sai para o almoço, Carla corre para alcançá-lo. Alcança. Almoçam juntos
num self-service, só os dois. Ele não
diz nada, ela fica falando sobre o dia anterior, sobre o que acha, sugestionando.
Parece estar desesperada para resolver logo a questão. Não sei, não sei, sei não, repete Thiago ao longo do almoço. A paciência
vai acabando aos poucos em forma de provocação, Carla quer resolver a vida como
se fosse bastante fácil decidir a que ponto se chega, a que ponto Thiago abrange memórias do casamento.
- A
que ponto você quer chegar? – ele pergunta, como se tivesse prenunciado o que
ela não disse.
-
Você sabe – ela graceja.
-
Sei não, não sei.
- Falta força em você, mesmo. Força pra dizer
pra si mesmo que não quer mais aquilo.
-
Que aquilo? Minha mulher?
- Eh...
Essa vida toda que você leva.
- Ela
não é aquilo. Pega leve aí, minha
filha. Deve estar falando da sua vida e tenta descontar em mim... Poxa – ficou
bravo.
- Ai,
não, seu bobo... não se ofende! Longe de mim desmerecer sua namoradinha.
-
Esposa.
- É,
esposa.
-
Quer que eu pense o quê? – pergunta, procurando manter a calma e a compostura,
apesar de apresentar uma vermelhidão profunda no rosto.
- Ah,
Thiago... Só acho que te falta coragem.
-
Coragem? – e respira bem fundo – Coragem eu tenho, pode ficar tranquila.
-
Posso apostar?
-
Aposta o quanto quiser!
-
Eu aposto um real que não.
Ele
lança um olha desafiador mais ou menos alienado, ela gosta. Arrumou para a
cabeça. Arrumaram.
Thiago
chega em casa e tenta encontrar algum resquício deixado para trás. No quarto, pensa
sozinho naquilo que pode ser a melhor decisão, até chora em conflito,
com o orgulho um pouco ferido e a cabeça perdida. Um tempo depois sai do quarto
recomposto. Propõe sair.
Leva
a mulher ao restaurante, cinema, até compra para ela um vestido no shopping. Ela
nem parece acreditar em tamanha bondade fora de época. Eles brincam, reparam em
quem passa por eles, conversam como há tempos não faziam. Existe veracidade na
alegria deles.
Há
como reverter, mas restam dúvidas. Thiago se pergunta ao longo da noite se ama
ou não ama, num incessante e fastidioso círculo sem nexo. Algo mais que cutuca
a consciência: é aquela provocação de Carla que virou fardo.
Logo
no fim da noite, já na cama, Thiago diz que convidou um casal para ir lá no
sábado. Tudo bem para ela.
Por
um capricho idiota ele se sente na obrigação de chocar todo mundo.
Dia
seguinte manda um e-mail para Carla:
JANTAR
EM MINHA CASA: AMANHÃ, 20H. VOCÊ E O MARIDÃO. APOSTO QUE VOCÊ TEM CORAGEM.
Respondeu
o e-mail marcando presença. E passou o expediente sem trocar palavra com
Thiago, só olhares.
À
noite, Carla fala sobre o convite com o marido, que reclama e diz que não é
muito de ir à casa dos outros que não conhece. Tenta mais tarde, pede meia hora
depois, na hora seguinte, na quarta vez ele cede. Com isso já inventa na cabeça
o que irá vestir para ser mais bonita do que ela.
Thiago
pede à mulher para fazer strogonoff de frango, prato preferido de Carla. A
generosidade espontânea dela – como se estivesse retribuindo o passeio, o
vestido, e todo o resto do dia anterior – é tanta que preparará um de frango e
outro de carne. Thiago trata de comprar três garrafas de vinho tinto e um
engradado de cerveja, caso o maridão prefira. Prenuncia-se um jantar feliz.
A
comida quase pronta, um trato rápido na sala. Todos aprumadinhos, bem
perfumadinhos e relativamente sobrecarregados, receio de não terem tanto assunto
para queimar a noite toda, mas há bebida suficiente para gerar desinibição uma
hora ou outra.
Oito
e quinze e chegam os convidados. Thiago recebe Carla e Sandro, que cumprimentam
Flávia, que sai da cozinha meio desengonçada e tímida, tropeçando no tapete.
Vieram munidos de uma caixa trufas e uma garrafa de vodca. Os olhares de Carla
sob Flávia são de um desdém contido, assim julga Thiago, que faz sala para
Sandro enquanto Flávia vai até a cozinha buscar uns aperitivos, Carla oferece
ajuda e vai também em seguida, rebolando levemente, como faz no trabalho.
Thiago
e Sandro são opostos, mas os santos batem. Cada um faz duas ou três perguntas
babacas sobre trabalho e times de futebol, depois se calam e alternam os
olhares ora para os respectivos sapatênis, ora para a televisão. Já está na
hora de começar a beber, ambos sentem a necessidade de se ocupar com um copo.
Elas
voltam com duas bandejas, uma com queijo parmesão com orégano e azeite e outra
com uma cesta de torradas e um pote cheio até a boca de patê de azeitona feito
por Flávia. Thiago oferece vinho, todos aceitam. E brindam e bebem e comem e se
empanturram de bobagens cotidianas e olhares difusos enquanto evapora a água do
arroz. Depois de uma taça entornada mais rápido que a dos demais presentes,
Carla pede um copo d’água e Thiago vai buscar. Thiago, cínico por completo. Novamente,
Carla se levanta e o segue até a cozinha. Ela sussurra, ele apenas fala:
- O
que significa esse convite? – pergunta Carla.
-
Só pra te mostrar. Mostrar você pra ela. Eu pra ele, normal.
-
Normal? Que é que tem de normal isso?
-
Ué, a gente não se conhece? Acho normal te convidar pra fazer alguma coisa fora
do trabalho.
-
Com meu marido e sua esposa?
-
Se fosse tão duro assim pra você, era só ter recusado o convite.
- Ah...
mas fiquei curiosa.
-
Com o quê?
-
Queria ver como era aqui, vocês dois juntos.
-
Pra quê? – ele ri, como se estivesse debochando.
-
Curiosidade mesmo... sei lá. E queria ver você – ela sorri com aquele típico
rosto reminiscente que sempre faz quando quer tirar algo. Mas ele apenas lhe dá
o copo.
-
Oh, a água.
-
Acho que você não bate bem – diz decepcionada, sem retribuições carinhosas.
Ele
dá de ombros.
Thiago
mantém a postura ilesa com sucesso, aí desliga a panela do arroz e depois
arruma a mesa. Flávia desliga a televisão e põe um som baixinho, Tim Maia Racional, o Volume Dois, Carla não seria capaz de
escolher isso, pensou Thiago. As travessas sobre a mesa, todos a postos.
Garfadas depois e todo mundo elogia. Carla não seria capaz de cozinhar assim,
pensou Thiago mais uma vez.
Cada
um repete o prato e acabam rapidamente com a comida. Agora se soltam mais,
falam de Tim Maia e Cultura Racional e comida e vontade de viajar e essas
coisas que ligam todo mundo com qualquer um perdido num jantar ou coisas do
tipo. Tudo vai bem com as trufas na mesa e o vinho na cabeça. A simpatia de
Flávia, o jeito engraçado de Thiago à vontade em sua própria casa. Sandro
parece realmente estar gostando de ter saído de casa. O acolhimento daquele
casal é quase tocante, julga ele no exagero da bebedeira, enquanto escuta o
anfitrião falar sobre sua viagem ao Chile no início do ano. Por outro lado,
Carla, numa infeliz paranoia, acredita estar ficando para trás mais e mais, tem
a impressão de que não acompanha Flávia em todas as suas qualidades e conforto;
permanece contida, mas continua com um sorriso esticado escondendo tudo, pelo
menos ela se acha bem mais bonita. No fundo só é quase perua, e ela sabe disso.
Já
tudo mais leve e brando após enxugarem as três garrafas de vinho. Todos
levemente bêbados. E é esse o intuito de Thiago, deixar todo mundo bastante vulnerável.
Ele apela para as cervejas e ainda traz uma garrafa de cachaça e a outra de
vodca que trouxeram. Depois oferece caipirinhas, diz que é uma de suas especialidades.
Ninguém toca nas cervejas, caipirinha de vodca para os quatro.
Tim Maia Racional Volume Dois pela terceira
vez. Aumentam o som. Agora estão bêbados mesmo e quase toda a formalidade se
esvai. Carla até brinca com Flávia, até esquece da posição defensiva que vinha
cultivando sentada à mesa. Já Thiago prossegue a noite se precavendo à sua
maneira, fica no sofá comendo o resto do queijo da bandeja observando os três
bebendo mais e se acabando de rir por nada, dançando “O Caminho do Bem” e
cantando tortuosamente, sem saberem a letra de música nenhuma. Até Sandro
decide falar mais, e admite:
-
Olha, eu assumo que quase decidi não vir... ia estragar tudo – e ri emitindo um
timbre inesperado e agudo.
-
Ia mesmo, ia mesmo... – repetem os outros três, quase em coro, como que para
abafar aquela risada feia.
- A
gente quase não sai assim, pra casa dos outros... né, amor? – e coloca a mão na
cintura da mulher, que responde balançando a cabeça afirmativamente. – A gente
também não é de beber muito, né? Não queria incomodar...
-
Imagina. Fica à vontade! – diz Flávia.
-
Obrigado, obrigado! – Sandro levanta o copo vazio com se estivesse propondo um
brinde. Depois põe um dedo de vodca pura no copo e ri daquele jeito mais uma
vez.
- E
eu que achei estranho o Thiago chamar vocês pra cá assim, do nada. Nunca tinha
me falado de vocês.
Carla,
com muita boa vontade e como se quisesse acabar com o resquício de tensão de
uma vez por todas, pergunta mais ou menos na inocência, ou na burrice, da bebedeira:
-
Verdade, Thiago, verdade... Você tá muito quieto aí! Conta pra gente o motivo
desse jantar.
-
Motivo? Não sei o motivo. É coisa que qualquer um faz de vez em quando, né?
Flávia
cessa Tim Maia, procurando outro som. Curiosamente, apagam todos os ruídos da
sala. Thiago pensa bem, mas rápido, e fala:
-
Na verdade é porque a Carla me deve um real.
Os
três choram de rir. Flávia, assustadoramente efusiva, se rende, caindo no chão;
Sandro, encostado na parede, abre um sorriso de ponta a ponta segurando um copo
de cerveja trêmulo; Carla dá gargalhadas com um ar de agonia e desespero, como
se já estivesse se punindo internamente pela besteira e por aquilo que acabara
de fazer aquele filho da puta de dizer. Thiago apenas observa o estado de todo
mundo. Flávia retoma as forças e se levanta, percebe o marido com um ar quase
soturno.
-
Você tá falando sério? – ela pergunta.
-
Claro.
-
Mas o que tem de tão importante nisso?
-
Acontece que apostamos – agora Carla fica alerta, perceptivelmente aflita. Ele retoma
o fôlego e, finalmente transparecendo a embriaguez, prossegue. – Um dia desses,
ela apostou comigo que eu não tinha coragem de dizer pra mim mesmo que não
quero mais certas coisas.
- Certas coisas? – repete Flávia – Que
porra de conversa esquisita – agora em tom bastante sério.
-
Não, eu não disse isso, seu doido! – retruca Carla, meio ruborizada, tentando
manter a leveza.
- Nessa
semana... – Carla puxa seu braço, tentando impedi-lo de falar – não, agora eu
quero dizer pra eles aqui o que aconteceu, me deixa! – se livra dela com um
pouco de rispidez e prossegue com a voz alcoolizada, comendo sílabas – Eu...
- Eu
o que, cacete!?!
- Acontece
que nessa semana a gente se beijou.
(...)
- Ah,
mas que beleza! É só isso que tem pra falar? – Flávia pergunta com uma ironia
amedrontadora após um rígido e demoroso espaço de tempo.
- É,
é só isso que eu tinha pra dizer.
Ele
levanta os braços num gesto que poderia significar muitas coisas. Espera por algum
diálogo dos piores, porém não vê a reação de ninguém, apenas um silêncio morto
e doloroso. Talvez estivesse fazendo uma tempestade desnecessária, pura questão
de perspectiva. Mas se sente na obrigação de continuar falando sem nenhuma
direção ou cuidado:
-
Acontece que acho que Carla queria que eu assumisse pra mim mesmo que eu quero
botar tudo a perder e acontece que estou botando tudo a perder e decidi que
estou arrependido e também decidi foder com toda essa merda dessa porra toda
aqui... Não quero saber de mais nada disso e tanto faz a situação agora! É isso
aí, tudo o que eu precisava dizer.
Dez enfadonhos segundos depois ele cobra de
Carla:
- E
cadê a minha moeda?
Carla
tira uma moeda de dentro da bolsa e joga com violência no rosto de Thiago, dramatizando
a cena e ferindo sua bochecha de modo que em outra circunstância teria sido estranhamente engraçado. Flávia chora, Carla xinga tudo o que é possível
de tudo o que é possível e Sandro, bêbado como um gambá fenomenal, volta a rir, sem
ninguém entender sua reação. Dava pena.
-
Por isso que veio com todo aquele fogo pra casa um dia desses, foi? – Carla baixa
a guarda – Ai ai ai, menina, viu!
Bate
amigavelmente no ombro de Thiago, que por sua vez se esquiva com medo de levar
uma porrada na cara. Sandro pega a garrafa de vodca da mesa, “Cara, valeu, pode
ficar com ela! Eu fico com o resto do que eu trouxe pra cá, fica tranquilo,
você me fez um favor”, e sai sozinho. Depois se ouve os pneus cantando e uma
longa comida de marcha antes de dobrar a esquina.
Por
um momento, todos os três olham para baixo.
Flávia
enxuga as lágrimas e some a embriaguez:
-
Como é que fica isso?... Como você me faz preparar comida pra quem você quer
comer?
Sem
se preocupar em como fará para chegar em casa sem o carro, Carla corre até a
porta ainda aberta e sai cambaleando num ziguezague deselegante sem a necessidade
dizer tchau.
O
casal fica ali, sem um olhar para a cara do outro. Falando bobagens até de manhã,
na boa vontade de tentar encontrar uma saída.
Thiago
nem se lembra mais daquele beijo, faz questão de apagar para sempre o
contentamento que chegou a provar no flerte com a outra. “Como era suja”, pensa
com pesar naquela moeda toda vez que percebe como é difícil reconstruir a felicidade
com Flávia, que ainda é sua esposa com a condição de que não cozinhará sabe lá
até quando e nada de “O Caminho do Bem” naquele lar.
Nunca
mais pisou naquela repartição sentindo-se vulnerável. Carla tomou outro
caminho, para bem longe, e não se sabe mais quem ela foi ali.
domingo, 6 de outubro de 2013
"Sobre Transações"
Conjunto cinza de moletom e chinelos. No meio do caminho ele vasculha o bolso de trás e nada tateia: esqueceu de trazer dinheiro, sonolento por demais. Volta para casa com uma rapidez inoportuna e enche a mão de um punhado de trocados que achou no aparador. É o suficiente. O matiz do dia é amarelado e feliz. De acordo com seu entusiasmo, passar por outubro sugere ansiedade. E neste mês, especificamente neste ano, a aflição é o dobro da habitual. Sendo assim, até seus trejeitos expõem a irrequieta sensação para si e para todos. É quase folga, detalhe que o faz sentir-se ingenuamente único e quase completo bem no íntimo. Assobia uma melodia do Neil Young buscando refrescar seu espírito, pois sabe que é dia 31 – terça-feira com cara de sexta, véspera da véspera do feriado de finados –, mas ainda precisa trabalhar. Tenta também com algum esforço recapitular o que sonhou, mas antes vem à mente a imagem do seu calendariozinho que fica na cabeceira da cama e que nesta manhã continha a seguinte frase: FORTUNA E PROSPERIDADE EXISTEM PARA QUEM ABRANGE, mas todo aquele bolo de moedas balançando no bolso rente à bunda dava cinco reais e setenta centavos, exatamente. Ironia. O outro lado da rua lhe chama atenção, pois seu ônibus 152 passa freando e emitindo uma algazarra mista de pausa e tralha metálica. Agora sabe que tem algo em torno de cinquenta minutos para fazer tudo o que tem que fazer e pegar o próximo a tempo e menos cheio. Mentalizando o assento que poderá estar vazio o legítimo bom humor enfim dá as caras e assim, cheio de perspectiva, entra na padaria e sente aquele cheiro de pão sendo assado. Apetite que lhe cutuca a barriga, a traquinagem fisiológica. Pede trezentos gramas de pão de queijo e um leite tipo B; quer também um café instantâneo, mas na hora de passar no caixa o dinheiro não dá e reclama com um resmungo voltado para si por não ter trazido a carteira. Põe o café de volta na prateleira, paga à mocinha vaidosa que masca chiclete. Dá para sentir o hálito de melancia; tudo é muito doce, nela, que cantarola uma música sertaneja que não faz par com o Only Love Can Break Your Heart dele. A mocinha repara no moletom, franze o cenho, desaprova a roupa com alguma palavra secreta e guarda entre os dentes a opinião e no caixa o dinheiro, o montante que contém justamente aquela moeda de um real. Valores miúdos, contatos cegos. Com o nariz permeado de pão semi assado e melancia, ele vai embora ainda bem humorado sem ter rememorado o sonho. Prorroga este pequeno prazer guardando-o para o trajeto do trabalho. Rapidamente, a mocinha dá de troco o prodigioso tesouro para um senhor que lhe pede um maço de cigarros light logo em seguida. Ele quer parar, mas não maquinou qualquer planejamento ou estratégia, portanto fumar seu primeiro cigarro do dia ainda não é doloroso. Naquele instante o que realmente o machuca é caminhar com aquele joelho incorreto alfinetando o apreço pelos ossos. Às 16h ele tem uma consulta com o ortopedista que analisará seu caso de osteoporose. Dependendo do quadro, ganhará quinze ou vinte dias de perna engessada: uma folga dentro da folga por já estar aposentado. Passa pela banca de jornal e observa as manchetes esportivas e nutre uma esperança nostálgica que consiste em seu alviverde revelar um novo Leivinha à nova geração. Mas sabe que o tempo é de marasmo, então volta ao joelho latejante e à sua mulher, que o espera pra tomar o café, que acabara de ser coado e adoçado. “Esqueci de pedir pra comprar um pote de margarina, tá acabando”, diz a esposa. Mas ele já colocou os pães na torradeira, “Pega o requeijão, não dá pra ficar saindo toda hora com esse negócio assim”, ele aponta para o joelho e ela bufa, mas consente segundos depois e arqueia as sobrancelhas. Parceira. Tomam o café silenciosamente enquanto a televisão da cozinha passa um acidente envolvendo um motociclista e um furgão amarelo que parece ser dos Correios. O cara da moto morreu. “Coitado”, ela diz, somente. Ele pragueja sobre o fato enquanto ela percebe o sol que faz: lavar a roupa. Por coincidência ou truque do inconsciente acostumado com a rotina, o caminhão da água de lavadeira grita gradualmente água lavadeira. Ele está para cruzar a esquina. A esposa traga com pressa o resto do café com leite. “Me arruma um dinheiro pra eu comprar umas coisas com o homem”. Cumprimenta o rapaz que está na caçamba rodeado de mangueiras e garrafas pet multicoloridas, depois pede um litro de amaciante com fragrância de jasmim e dois reais de sabão de coco, o que dá seis barras. O cheiro dos produtos, as cores químicas e o megafone imperativo trazem à tona uma indizível sensação remota e macia, para ela. Para ele, que ainda está na cozinha segurando a xícara com dois dedos envolvendo a alça e imaginando a imprudência do motociclista, foi o desapego de mais um acanhado trocado discretamente vivo. Um pequeno e calado grupo de donas de casa vai se amontoando no caminhão. “Me dá isso, me dá aquilo”. Tanto brigado, brigada, obrigado você. O ônibus 152 menos vazio ronqueja distante, o sertanejo de melancia se cala como se fosse nada. Aquele um real se dispersa e para em alguma mão feminina. Houve uma prolixa confabulação, um sutil contato. Ninguém notou.
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