Às
quatro e meia da tarde houve um imenso e surpreendente desejo tolo quando do
outro lado da rua uma vitrine empesteada de doces a preço único palpitou em meu
caminho. Todas aquelas porcarias e não há como despercebê-las; receitas de morango,
doce de leite, cereja, geleia, chocolate. Cinco reais por um pedaço do dia que
vale a pena não nos aparenta ser tão caro assim. Então entro, sento e peço à
moça que me atende uma torta holandesa e uma garrafa de água gelada sem gás.
Talvez em um horário mais ameno a mesma moça agacharia debaixo do balcão para a
câmera não acusá-la enquanto deliciosamente come um quindim numa bocada só. Por
fim vejo o meu doce na mão da moça. Ele está mal representado numa espécie rasa
de copo quadrado de plástico semelhante a um aquário de peixe beta, o qual me
dá a impressão de que não conseguirei meter a colher nos cantos do fundo sem
parecer um processo cirúrgico ou um mão de vaca que quer sugar cada centavo. Eu
agradeço. Segundos depois a garçonete volta atrás e pergunta se eu aceito comer
um salgado antes, peço uma empada de palmito. Só havia de frango. Aceitei assim
mesmo. A empada chega com uma cor saudável. Mordo com vontade sem verificar a
temperatura e concluo que está bastante quente. Engulo freneticamente o pedaço
ao mesmo tempo em que expulso o vapor com uma fisionomia de angústia e
afobação. O sabor é anulado pelo ardor e tudo o que posso sentir antes do bolo
alimentar descer para o meu esôfago é um ingrediente desconhecido e
intransigente, duro: um real fervido que no calor do momento me pareceu mais
uma lisa e irregular azeitona preta. Bebo com rapidez a água para tentar anular
a etapa anterior, mas minha língua já estava bastante queimada. Termino de
comer o resto com pouca pressa, sem grandes pretensões de me sentir satisfeito
por coisa alguma. Já estava feito. Paguei meu consumo e fui embora a tempo de
descer aquela íngreme rua e encontrar no caminho três tipos diferentes de se
pedir esmola; como na vitrine cheia de doces, escolhi a melhor alternativa e
dei um trocado para o infeliz que lá estava sentado na guia com uma perna
carcomida de perebas e uma bandana vermelha cobrindo a parte mais crítica, a
qual ele ameaçou mostrar mesmo quando desviei o olhar. Do lado oposto cachorros
faziam coisas de cachorro nas calçadas de comércios de coreanos e chineses e
brasileiros, lá e cá: faziam amor complacente e engoliam sem vaidade restos de
comidas sem pagar. Comida e custo, comida
e custo... arroto constante que me fazia lembrar. E eu pensava em quão
proveitoso seria existir daquele modo despretensioso, tendo apenas que dar em
troca uma participação usual numa rua fedida precificando a minha própria
sorte. Mas é tão besta raciocinar assim que nada daquilo fez muito sentido
minutos depois; três reais a menos e eu já estava no metrô... Hora propícia
para ficar calado ressaltando outros departamentos com o estômago reclamando e
sacudindo. Ele queria me alertar do perigo iminente, mas me pareceu apenas uma
forte crise de flatulência chegando enquanto meus sentimentos continuavam
apontando para outro sentimento mais intrínseco que cansaço ou outra coisa
aleatória. Nada que me dizia respeito, eu só queria ir pra casa. Minha
indisposição ao lado de um senhor pardo com uma bíblia debaixo do sovaco e um
rosto íntegro que quase imitei sem a intenção. Meu suor seco com dez ou mais
mulheres de meia idade passivas ou o contrário e adolescentes uniformizados com
blusões azuis e suas montanhosas mochilas nas costas. Suor seco deles, gosto da
empada na boca indo e vindo e os vagões pareciam soltos. Coletivo munido de
celulares em mãos de todos os tamanhos e cores e cheiros de coisas e lugares
que me faziam ter a impressão de que eu estava mais limpo que os outros.
Parecia que eu ia adoecer. Cheguei com um sorriso mental em frente ao portão de
casa. Banheiro, cozinha, televisão e o alívio preciso em todas as partes do
corpo; sem sapatos, meias, calça ou bagunça na sala. Um silêncio abafado me pôs
relaxado no sofá para curtir aquele vazio ao mesmo tempo em que massageava
minha própria testa. Recorri ao resumo do dia, recapitulei hora a hora com
bastante facilidade enquanto dentro de mim algo desconhecido gradativamente me
provocou calafrios como quando se declara para alguém ou quando está a ponto de
ver uma catástrofe premeditada. O abdômen falando. Fui ao banheiro
imediatamente para acabar com a dúvida. Em meio ao habitual, um timbre agudo e
sólido estala na cerâmica da privada ao mesmo tempo em que paira uma súbita
consolação intestinal. Verifico meio sem jeito de olhar e lá está o ingrediente. Nos olhos uma expressão de repúdio
embaralhada pelo acúmulo desfigurado de refeições e o lucro imaculado. Imersos
na água, bosta e moeda, cada coisa com seu devido nome e propósito. Um real de
sempre, comoção de graça. Tirei-o dali, limpei e guardei na minha carteira com
a intenção de dar a alguém sem mencionar sua trajetória. E ainda não escolhi
essa pessoa.
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