Ao
longo dos anos você percorre por uma série de situações parecidas ou ao menos
próximas de pouca variedade ou brilho. Ao longo dos tempos o tempo é mais
rápido, um segundo depois ou no dia seguinte. As maneiras são as mesmas, os
deslumbres são os mesmos; muda o protagonista, um perece e entra outro mais
perecível. Alguns nos deixam na mão peculiarmente, surpreendendo a quem não se
precaveu. Não é fácil perceber detalhes, não é divertido; achar sabor no que se
vê, doce ou amargo ou qualquer bobagem. Texturas que se repetem, outras não
mais. Eventos que estão por vir. Basicamente, é notável o frio que dá na
barriga.
Lindas
cores vibrantes que anima a população vestida de roupa leve e a previsão do
tempo que não prospecta chover na garotinha voltando da escola de mãos dadas
com a avó e em todo o resto da cidade. Nuvens branquinhas, garis varrendo a rua
e amarelinhas desenhadas em tijolo no asfalto, do céu ao inferno; é assim que
se vê um dia raro no ABC Paulista em que um menino no meio da rua empinando
pipa encosta a linha na rede elétrica e morre assustando todo mundo que viu e
não viu.
O
choro da vizinha e o enigmático desespero da mãe, o pai a caminho, o amigo
traumatizado e ele longe e seu ex-corpo de oito anos duro no chão. Resgate e
imprensa cobrindo o defunto de todas as maneiras. Um jeito de surrealismo num
dia lúdico de férias.
No
aconchego a quilômetros de distância da cena, Santa Cecília, capital paulista.
Do alto do segundo andar Cláudio vê o menino Cauê no jornal e sente uma
profunda tristeza quando assiste a mãe do menino contando ao repórter os pormenores
do que aconteceu. Cláudio nota a semelhança de seu próprio rosto quando
criança, quando desobedecia a ordem de brincar na calçada e pulava alucinado
por cima das lixeiras vazias e subia em árvores. Essas modas estão acabando aos
poucos. O sentimento de comoção se dissolve quando ele escuta a notícia
seguinte.
A
alheia ligação entre esses dois cidadãos cessa quando Cláudio sai da frente da
televisão e, como de costume, leva seu cão salsichinha para passear de coleira.
O
cão caminha pomposamente ao lado do seu dono parecendo ter a certeza de que
aquilo viria a ser a melhor parte do dia. Param na tenda de um chinês que vende
pastel. O bicho come os farelos de massa e pedaços de tomates e cebolas do
molho vinagrete grudados no chão enquanto Cláudio pede um pastel de carne. O
pastel está pronto. Cláudio come usando uma mão enquanto a outra se sacode com
a coleira; o cachorro se agita por conta de um pombo que também petisca sujeira
no asfalto.
Cláudio
sai da barraca de pastel. Duas mulheres passam por ele citando o menino
eletrocutado: “Miiisericórdia... mulher do céu... que coisa foi aquela?”, dentre
outros dizeres. Logo depois ele para para observa as manchetes na banca de
jornal. O menino eletrocutado; o menino eletrocutado na boca do povo; o Menino
Cauê nos periódicos, em fotografias, em texto, eletrocutado. O alarde é intenso,
a ênfase incomoda e Cláudio pensa em dizer foda-se
gratuitamente para o próximo que passar a seu lado comentando o incidente,
mas prefere substituir o aborrecimento dizendo nada, como deve permanecer se
comportando uma pessoa adequada.
As
pessoas saturam o direito de se mostrarem emocionadas por alguma coisa e
Cláudio não é capaz aceitar isso. Certamente estão de acordo em levar a sensação
de choque junto com o menino até chegarem em casa e procurarem saber de mais
alguma coisa pela qual viver. Cláudio fica chocado por ninguém demonstrar
conhecimento de nada digno de mais importância, nada mais funesto ou de qualquer
outra qualidade. Porém, para ele nada disso vale e vai até a casa lotérica para
comprar uma raspadinha.
Ele
chega lá. Um real: é o quanto custa a raspadinha. Raspa com a chave e ganha um
real... naturalmente, mais uma raspadinha. Raspa com a chave, desta vez com um
sentimento maior de fidúcia, e ganha cinquenta reais. Em toda sua trajetória
lotérica nunca ganhara nada, por isso não consegue conceber que a sorte batera
em sua porta duas vezes no mesmo dia. Mostrou a raspadinha premiada ao homem
que operava o caixa, o qual estava assistindo a televisão pendurada no alto da
parede. Deu a Cláudio o prêmio em duas notas de vinte e duas de cinco e
balbuciou por cortesia protocolar um parabéns
murcho quando ao mesmo tempo retomou o olhar para o noticiário com o menino
eletrocutado protagonizando toda a programação. Taquicardia e palpitações e
limite: Cláudio estoura retribuindo com xingamentos, grosserias, como se
estivesse falando com toda a população local consolidada por inteira naquele
pobre infeliz sem dolo de qualquer frustração alheia; afrouxa-se com a raiva de
Cláudio e esboça um queixo trêmulo magoado. Até chega a dizer algo repreensivo,
mas de tão frágil Cláudio não escuta nada. A mulher que estava na fila
segurando um maço de contas a pagar expele um petulante e sussurrante
“Ignorante!” e completa sua maldição com “Cretino!”. Absolvido de qualquer
humanidade, o cão salsicha apenas põe a língua para fora sem maiores pretensões
de ser nada além daquilo.
Cláudio
vira as costas e respira fundo maldizendo seu caráter momentâneo, nunca havia
falado com alguém assim na rua. Tem a certeza de que machucou alguém. Por outro
lado sente-se cegamente realizado e discorre sobre quantas vezes havia sido a
vez dele de ser a vítima de todo mundo.
“Basicamente,
é notável o frio que dá na barriga”, conclui sozinho sem a ajuda de ninguém.
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