Ela
pede com gestos e com o rosto reminiscente para ele perder a cabeça de uma vez
sem pensar, mas aí ele se trai e põe as mãos nela obedecendo aos sinais: agora
ele é um cafajeste. Quadril, cintura. A bunda dela, por meio do tato, é um delicioso
amontoado irremediavelmente macio de vontades que lhe cutucaram o pensamento
por um par de meses ou mais. O beijo dele é aflito e aquela barba irrita a pele
do jeito que ela imaginava e queria que fosse.
Morre
a curiosidade como morre acima deles a luz do poste que pisca uma sequência
perturbadora como pisca a informação do outdoor que arranha parte da cena como
arranha o chão os tilintantes cacos de vidro que ladeira abaixo deslizam inevitavelmente
como desliza o cheiro da dama-da-noite da esquina que ano a ano cresce como
cresce a mesma indiscrição que dá início a toda infidelidade. Aglutinação de enfeites
estranhos que tornaram aquele maldito momento excepcional para os dois, Carla e
Thiago. Morre tudo isso em torno de um beijo lento, sem promessas.
Marido
de Carla conta as despesas do mês na mesa da cozinha. Esposa de Thiago pinta as
unhas de violeta enquanto assiste novela.
Os
fatos prosseguem remoendo nas cabeças antes do conhecimento de todos. Thiago
volta para casa com o cheiro de Carla esparramado na roupa e no corpo. Carla
faz planos em segredo como fazia bem antes do beijo, o qual ainda é sentindo
naquelas duas bocas. Gosto delicado de saliva com ruptura.
Thiago
põe os pés dentro de casa saboreando um natural sentimento de culpa. Com medo
de que sua mulher descubra, ele apenas diz de longe um olá meu amor e corre para o banheiro dizendo que está apertado.
Toma banho e lava tudo cuidadosamente para não restar vestígios. Joga a roupa
suja no fundo do cesto para se misturar com o suor das outras.
Quando
volta à sala, ela põe a mesa e eles jantam uma macarronada em meio a perguntas
do cotidiano. Tudo é cenográfico, morno e protegido. Por dentro dos dois dói
lentamente o tédio que não sabem como liquidar. Ela nem quer mais aquilo, e é
difícil por um ponto final quando não se tem a coragem necessária. Mais fácil
esperar pela catástrofe. Assistem ao jornal, um seriado e depois vão dormir sem
ter assunto para depois.
Carla
chega e vê seu marido sentado calculando o orçamento. O beijo ainda repercute
no pensamento e ela precisa continuar aquilo seja lá como for. Puxa o marido,
beija o pescoço dele, põe a língua em sua boca e acendem. Com efeito, transam
rapidamente sobre a mesa cheia de recibos e cartas abertas.
O
resto da noite prossegue quase usual, com uma leve alteração quando,
aproveitando uma disposição sem propósito, eles repetem o sexo. Em ambas as vezes
ela imagina Thiago, enquanto o marido faz tudo por fazer, já bastante enojado
do sexo conjugal. Deve ter os seus motivos.
Carla
faz o dia parecer mais agradável naquela repartição. Está mais bonita, atraindo
olhares e elogios de colegas. Thiago observa tudo com um ar de tensão, como se
estivesse com medo de perder o emprego. Ele apenas faz seu trabalho quieto,
tentando evitar o encontro com Carla. No fundo ele sabe que a condição está se
tornando incontrolável e, uma hora ou outra, alguma merda bem feita deverá
explodir sem remédio.
Quando
Thiago sai para o almoço, Carla corre para alcançá-lo. Alcança. Almoçam juntos
num self-service, só os dois. Ele não
diz nada, ela fica falando sobre o dia anterior, sobre o que acha, sugestionando.
Parece estar desesperada para resolver logo a questão. Não sei, não sei, sei não, repete Thiago ao longo do almoço. A paciência
vai acabando aos poucos em forma de provocação, Carla quer resolver a vida como
se fosse bastante fácil decidir a que ponto se chega, a que ponto Thiago abrange memórias do casamento.
- A
que ponto você quer chegar? – ele pergunta, como se tivesse prenunciado o que
ela não disse.
-
Você sabe – ela graceja.
-
Sei não, não sei.
- Falta força em você, mesmo. Força pra dizer
pra si mesmo que não quer mais aquilo.
-
Que aquilo? Minha mulher?
- Eh...
Essa vida toda que você leva.
- Ela
não é aquilo. Pega leve aí, minha
filha. Deve estar falando da sua vida e tenta descontar em mim... Poxa – ficou
bravo.
- Ai,
não, seu bobo... não se ofende! Longe de mim desmerecer sua namoradinha.
-
Esposa.
- É,
esposa.
-
Quer que eu pense o quê? – pergunta, procurando manter a calma e a compostura,
apesar de apresentar uma vermelhidão profunda no rosto.
- Ah,
Thiago... Só acho que te falta coragem.
-
Coragem? – e respira bem fundo – Coragem eu tenho, pode ficar tranquila.
-
Posso apostar?
-
Aposta o quanto quiser!
-
Eu aposto um real que não.
Ele
lança um olha desafiador mais ou menos alienado, ela gosta. Arrumou para a
cabeça. Arrumaram.
Thiago
chega em casa e tenta encontrar algum resquício deixado para trás. No quarto, pensa
sozinho naquilo que pode ser a melhor decisão, até chora em conflito,
com o orgulho um pouco ferido e a cabeça perdida. Um tempo depois sai do quarto
recomposto. Propõe sair.
Leva
a mulher ao restaurante, cinema, até compra para ela um vestido no shopping. Ela
nem parece acreditar em tamanha bondade fora de época. Eles brincam, reparam em
quem passa por eles, conversam como há tempos não faziam. Existe veracidade na
alegria deles.
Há
como reverter, mas restam dúvidas. Thiago se pergunta ao longo da noite se ama
ou não ama, num incessante e fastidioso círculo sem nexo. Algo mais que cutuca
a consciência: é aquela provocação de Carla que virou fardo.
Logo
no fim da noite, já na cama, Thiago diz que convidou um casal para ir lá no
sábado. Tudo bem para ela.
Por
um capricho idiota ele se sente na obrigação de chocar todo mundo.
Dia
seguinte manda um e-mail para Carla:
JANTAR
EM MINHA CASA: AMANHÃ, 20H. VOCÊ E O MARIDÃO. APOSTO QUE VOCÊ TEM CORAGEM.
Respondeu
o e-mail marcando presença. E passou o expediente sem trocar palavra com
Thiago, só olhares.
À
noite, Carla fala sobre o convite com o marido, que reclama e diz que não é
muito de ir à casa dos outros que não conhece. Tenta mais tarde, pede meia hora
depois, na hora seguinte, na quarta vez ele cede. Com isso já inventa na cabeça
o que irá vestir para ser mais bonita do que ela.
Thiago
pede à mulher para fazer strogonoff de frango, prato preferido de Carla. A
generosidade espontânea dela – como se estivesse retribuindo o passeio, o
vestido, e todo o resto do dia anterior – é tanta que preparará um de frango e
outro de carne. Thiago trata de comprar três garrafas de vinho tinto e um
engradado de cerveja, caso o maridão prefira. Prenuncia-se um jantar feliz.
A
comida quase pronta, um trato rápido na sala. Todos aprumadinhos, bem
perfumadinhos e relativamente sobrecarregados, receio de não terem tanto assunto
para queimar a noite toda, mas há bebida suficiente para gerar desinibição uma
hora ou outra.
Oito
e quinze e chegam os convidados. Thiago recebe Carla e Sandro, que cumprimentam
Flávia, que sai da cozinha meio desengonçada e tímida, tropeçando no tapete.
Vieram munidos de uma caixa trufas e uma garrafa de vodca. Os olhares de Carla
sob Flávia são de um desdém contido, assim julga Thiago, que faz sala para
Sandro enquanto Flávia vai até a cozinha buscar uns aperitivos, Carla oferece
ajuda e vai também em seguida, rebolando levemente, como faz no trabalho.
Thiago
e Sandro são opostos, mas os santos batem. Cada um faz duas ou três perguntas
babacas sobre trabalho e times de futebol, depois se calam e alternam os
olhares ora para os respectivos sapatênis, ora para a televisão. Já está na
hora de começar a beber, ambos sentem a necessidade de se ocupar com um copo.
Elas
voltam com duas bandejas, uma com queijo parmesão com orégano e azeite e outra
com uma cesta de torradas e um pote cheio até a boca de patê de azeitona feito
por Flávia. Thiago oferece vinho, todos aceitam. E brindam e bebem e comem e se
empanturram de bobagens cotidianas e olhares difusos enquanto evapora a água do
arroz. Depois de uma taça entornada mais rápido que a dos demais presentes,
Carla pede um copo d’água e Thiago vai buscar. Thiago, cínico por completo. Novamente,
Carla se levanta e o segue até a cozinha. Ela sussurra, ele apenas fala:
- O
que significa esse convite? – pergunta Carla.
-
Só pra te mostrar. Mostrar você pra ela. Eu pra ele, normal.
-
Normal? Que é que tem de normal isso?
-
Ué, a gente não se conhece? Acho normal te convidar pra fazer alguma coisa fora
do trabalho.
-
Com meu marido e sua esposa?
-
Se fosse tão duro assim pra você, era só ter recusado o convite.
- Ah...
mas fiquei curiosa.
-
Com o quê?
-
Queria ver como era aqui, vocês dois juntos.
-
Pra quê? – ele ri, como se estivesse debochando.
-
Curiosidade mesmo... sei lá. E queria ver você – ela sorri com aquele típico
rosto reminiscente que sempre faz quando quer tirar algo. Mas ele apenas lhe dá
o copo.
-
Oh, a água.
-
Acho que você não bate bem – diz decepcionada, sem retribuições carinhosas.
Ele
dá de ombros.
Thiago
mantém a postura ilesa com sucesso, aí desliga a panela do arroz e depois
arruma a mesa. Flávia desliga a televisão e põe um som baixinho, Tim Maia Racional, o Volume Dois, Carla não seria capaz de
escolher isso, pensou Thiago. As travessas sobre a mesa, todos a postos.
Garfadas depois e todo mundo elogia. Carla não seria capaz de cozinhar assim,
pensou Thiago mais uma vez.
Cada
um repete o prato e acabam rapidamente com a comida. Agora se soltam mais,
falam de Tim Maia e Cultura Racional e comida e vontade de viajar e essas
coisas que ligam todo mundo com qualquer um perdido num jantar ou coisas do
tipo. Tudo vai bem com as trufas na mesa e o vinho na cabeça. A simpatia de
Flávia, o jeito engraçado de Thiago à vontade em sua própria casa. Sandro
parece realmente estar gostando de ter saído de casa. O acolhimento daquele
casal é quase tocante, julga ele no exagero da bebedeira, enquanto escuta o
anfitrião falar sobre sua viagem ao Chile no início do ano. Por outro lado,
Carla, numa infeliz paranoia, acredita estar ficando para trás mais e mais, tem
a impressão de que não acompanha Flávia em todas as suas qualidades e conforto;
permanece contida, mas continua com um sorriso esticado escondendo tudo, pelo
menos ela se acha bem mais bonita. No fundo só é quase perua, e ela sabe disso.
Já
tudo mais leve e brando após enxugarem as três garrafas de vinho. Todos
levemente bêbados. E é esse o intuito de Thiago, deixar todo mundo bastante vulnerável.
Ele apela para as cervejas e ainda traz uma garrafa de cachaça e a outra de
vodca que trouxeram. Depois oferece caipirinhas, diz que é uma de suas especialidades.
Ninguém toca nas cervejas, caipirinha de vodca para os quatro.
Tim Maia Racional Volume Dois pela terceira
vez. Aumentam o som. Agora estão bêbados mesmo e quase toda a formalidade se
esvai. Carla até brinca com Flávia, até esquece da posição defensiva que vinha
cultivando sentada à mesa. Já Thiago prossegue a noite se precavendo à sua
maneira, fica no sofá comendo o resto do queijo da bandeja observando os três
bebendo mais e se acabando de rir por nada, dançando “O Caminho do Bem” e
cantando tortuosamente, sem saberem a letra de música nenhuma. Até Sandro
decide falar mais, e admite:
-
Olha, eu assumo que quase decidi não vir... ia estragar tudo – e ri emitindo um
timbre inesperado e agudo.
-
Ia mesmo, ia mesmo... – repetem os outros três, quase em coro, como que para
abafar aquela risada feia.
- A
gente quase não sai assim, pra casa dos outros... né, amor? – e coloca a mão na
cintura da mulher, que responde balançando a cabeça afirmativamente. – A gente
também não é de beber muito, né? Não queria incomodar...
-
Imagina. Fica à vontade! – diz Flávia.
-
Obrigado, obrigado! – Sandro levanta o copo vazio com se estivesse propondo um
brinde. Depois põe um dedo de vodca pura no copo e ri daquele jeito mais uma
vez.
- E
eu que achei estranho o Thiago chamar vocês pra cá assim, do nada. Nunca tinha
me falado de vocês.
Carla,
com muita boa vontade e como se quisesse acabar com o resquício de tensão de
uma vez por todas, pergunta mais ou menos na inocência, ou na burrice, da bebedeira:
-
Verdade, Thiago, verdade... Você tá muito quieto aí! Conta pra gente o motivo
desse jantar.
-
Motivo? Não sei o motivo. É coisa que qualquer um faz de vez em quando, né?
Flávia
cessa Tim Maia, procurando outro som. Curiosamente, apagam todos os ruídos da
sala. Thiago pensa bem, mas rápido, e fala:
-
Na verdade é porque a Carla me deve um real.
Os
três choram de rir. Flávia, assustadoramente efusiva, se rende, caindo no chão;
Sandro, encostado na parede, abre um sorriso de ponta a ponta segurando um copo
de cerveja trêmulo; Carla dá gargalhadas com um ar de agonia e desespero, como
se já estivesse se punindo internamente pela besteira e por aquilo que acabara
de fazer aquele filho da puta de dizer. Thiago apenas observa o estado de todo
mundo. Flávia retoma as forças e se levanta, percebe o marido com um ar quase
soturno.
-
Você tá falando sério? – ela pergunta.
-
Claro.
-
Mas o que tem de tão importante nisso?
-
Acontece que apostamos – agora Carla fica alerta, perceptivelmente aflita. Ele retoma
o fôlego e, finalmente transparecendo a embriaguez, prossegue. – Um dia desses,
ela apostou comigo que eu não tinha coragem de dizer pra mim mesmo que não
quero mais certas coisas.
- Certas coisas? – repete Flávia – Que
porra de conversa esquisita – agora em tom bastante sério.
-
Não, eu não disse isso, seu doido! – retruca Carla, meio ruborizada, tentando
manter a leveza.
- Nessa
semana... – Carla puxa seu braço, tentando impedi-lo de falar – não, agora eu
quero dizer pra eles aqui o que aconteceu, me deixa! – se livra dela com um
pouco de rispidez e prossegue com a voz alcoolizada, comendo sílabas – Eu...
- Eu
o que, cacete!?!
- Acontece
que nessa semana a gente se beijou.
(...)
- Ah,
mas que beleza! É só isso que tem pra falar? – Flávia pergunta com uma ironia
amedrontadora após um rígido e demoroso espaço de tempo.
- É,
é só isso que eu tinha pra dizer.
Ele
levanta os braços num gesto que poderia significar muitas coisas. Espera por algum
diálogo dos piores, porém não vê a reação de ninguém, apenas um silêncio morto
e doloroso. Talvez estivesse fazendo uma tempestade desnecessária, pura questão
de perspectiva. Mas se sente na obrigação de continuar falando sem nenhuma
direção ou cuidado:
-
Acontece que acho que Carla queria que eu assumisse pra mim mesmo que eu quero
botar tudo a perder e acontece que estou botando tudo a perder e decidi que
estou arrependido e também decidi foder com toda essa merda dessa porra toda
aqui... Não quero saber de mais nada disso e tanto faz a situação agora! É isso
aí, tudo o que eu precisava dizer.
Dez enfadonhos segundos depois ele cobra de
Carla:
- E
cadê a minha moeda?
Carla
tira uma moeda de dentro da bolsa e joga com violência no rosto de Thiago, dramatizando
a cena e ferindo sua bochecha de modo que em outra circunstância teria sido estranhamente engraçado. Flávia chora, Carla xinga tudo o que é possível
de tudo o que é possível e Sandro, bêbado como um gambá fenomenal, volta a rir, sem
ninguém entender sua reação. Dava pena.
-
Por isso que veio com todo aquele fogo pra casa um dia desses, foi? – Carla baixa
a guarda – Ai ai ai, menina, viu!
Bate
amigavelmente no ombro de Thiago, que por sua vez se esquiva com medo de levar
uma porrada na cara. Sandro pega a garrafa de vodca da mesa, “Cara, valeu, pode
ficar com ela! Eu fico com o resto do que eu trouxe pra cá, fica tranquilo,
você me fez um favor”, e sai sozinho. Depois se ouve os pneus cantando e uma
longa comida de marcha antes de dobrar a esquina.
Por
um momento, todos os três olham para baixo.
Flávia
enxuga as lágrimas e some a embriaguez:
-
Como é que fica isso?... Como você me faz preparar comida pra quem você quer
comer?
Sem
se preocupar em como fará para chegar em casa sem o carro, Carla corre até a
porta ainda aberta e sai cambaleando num ziguezague deselegante sem a necessidade
dizer tchau.
O
casal fica ali, sem um olhar para a cara do outro. Falando bobagens até de manhã,
na boa vontade de tentar encontrar uma saída.
Thiago
nem se lembra mais daquele beijo, faz questão de apagar para sempre o
contentamento que chegou a provar no flerte com a outra. “Como era suja”, pensa
com pesar naquela moeda toda vez que percebe como é difícil reconstruir a felicidade
com Flávia, que ainda é sua esposa com a condição de que não cozinhará sabe lá
até quando e nada de “O Caminho do Bem” naquele lar.
Nunca
mais pisou naquela repartição sentindo-se vulnerável. Carla tomou outro
caminho, para bem longe, e não se sabe mais quem ela foi ali.